Junqueiro saiu de Coimbra, Bordalo de Lisboa. Nas décadas de 40 /50 do passado século XX, surgiu um tipo de literatura com determinada carga ideológica, centrada na crítica social, cujo herói colectivo era o Povo. O Povo injustiçado, decrépito, humilhado pelas condições sociais que lhe eram impostas pelo Regime; mas um Povo vivo e atento.
Afonso Ribeiro nos seus Contos[1], no texto de abertura, apela à sua condição: camada social esmagada sob o peso de uma vida amarga e injusta. E Barata Dias em Amanhã Quando romper o Dia[2] adivinha-lhe o poder de reflexão sobre os direitos legítimos do indivíduo. Este Povo injustiçado, quebrado, moribundo, é descrito nas páginas de Vergílio Ferreira[3], Alves Redol[4], ou Soeiro Pereira Gomes[5]. Todos censurados pelo Regime.
Nas Farpas (1871), no primeiro número, Eça de Queirós respiga: o povo está na miséria[6]. Mas ao Povo dedicou um texto soberbo, onde discorre sobre a sua condição de homens que vivem do trabalho duro e áspero. Não resistimos em o citar por inteiro: “Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, e se lamentam em vão. Estes homens são o Povo. Estes homens, sob o peso do calor e do sol, transidos pelas chuvas, e pelo frio, descalços, mal nutridos, lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar a pão, o alimento de todos. Estes são o Povo, e são os que nos alimentam. Estes homens vivem nas fábricas, pálidos, doentes, sem família, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansão da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos. Estes homens são o Povo, e são os que nos vestem. Estes homens vivem debaixo das minas, sem o sol e as doçuras consoladoras da Natureza, respirando mal, comendo pouco, sempre na véspera da morte, rotos, sujos, curvados, e extraem o metal, o minério, o cobre, o ferro, e toda a matéria das indústrias. Estes homens são o Povo, e são os que nos enriquecem. Estes homens, nos tempos de lutas e de crises, tomam as velhas armas da Pátria e vão, dormindo mal, com marchas terríveis, a neve, a chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mães, sem ventura, esquecidos, para que nós conservemos o nosso descanso opulento. Estes homens são o Povo, e são os que nos defendem. Estes homens formam as equipagens dos navios, são lenhadores, guardadores de gado, servos mal retribuídos e desprezados.
Estes homens, são os que nos servem. E por isso que os que têm coração e alma, e amam a Justiça, devem lutar e combater pelo Povo. E ainda que não sejam escutados, têm na amizade dele uma consolação suprema”.
Estes homens, são os que nos servem. E por isso que os que têm coração e alma, e amam a Justiça, devem lutar e combater pelo Povo. E ainda que não sejam escutados, têm na amizade dele uma consolação suprema”.
O Povo de Eça é o mesmo a quem Abraham Lincoln se dirige no comovente discurso que proferiu na cerimónia da dedicação do cemitério militar de Gettysburg: “ Há quarenta anos os nossos pais trouxeram para este continente uma nova nação, concebida na liberdade[7] e dedicada à defesa da tese de que os homens são todos iguais. (…) que esta nação por Deus protegida conheça um renascimento de liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da superfície da terra”[8].
E isto foi presenciado e narrado por Alexis de Tocqueville na sua obra imortal, Da Democracia na América[9].
No Balanço Patriótico da sua peça dramática, A Pátria, Guerra Junqueiro, satiriza-o impiedosamente, porque não acorda[10]. O povo que adora, porque sofre e é bom, é um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de miséria, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta; […][11].
Bordalo Pinheiro, um critico genial da sua época, é também ele impiedoso. E não recuou ante o impulso de ridicularizar o próprio Rei (como havia feito Junqueiro). Mas Bordalo, como Eça, decidiu glorificar o Povo, escolhendo-o como seu herói. Contudo, como Junqueiro, define-lhe as qualidades e os defeitos. Imortal, o Zé-povinho de Bordalo, ora submisso, com uma canga às costas feito burro de carga e vexado pelos poderosos, ora irreverente, fazendo o “manguito” a quem o queira enganar, tornou-se o ícone mais representativo do português. O símbolo de um povo triste e subserviente que a espaços – mas só a espaços – é capaz de um gesto de revolta[12].
No seu Álbum de Glórias, retrata o seu Zé-povinho, quase a encolher os ombros e de albarda por perto. Cada glória era então vendida avulso, cada estampa a cores acompanhada pelo respectivo texto e o conjunto embrulhado em folhas de protecção. O Texto do Zé-povinho inicia desta forma:
Albarde-se o burro
à vontade do seu dono!
(sabedoria do biografado)[13]
[1] Povo: contos, ed. Ibérica, Porto, 1947
[2] Gleba, Lisboa, 1946. Também censurado pelo regime.
[3] O Caminho fica Longe, Inquérito, 1943.
[4] Gaibéus, Ed. do autor, Lisboa, 1939.
[5] Esteiros, Sirius, Lisboa, 1942; Refúgio Perdido, Porto, SEM, 1950; Engrenagem, Porto, SEM, 1951
[6] Citemo-lo na íntegra: “O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido!” (As Farpas, Crónica mensal da politica, das letras e dos costumes – Eça de Queirós e Ramalho Ortigão – Coord. Maria Filomena Mónica, Principia, S. João do Estoril, 2004). Eça, satiriza-o por intermédio de João da Ega, n’Os Maias.
[7] O negrito é nosso.
[8] MONTEFIORE, Simon Sebag, Discursos que Mudaram o Mundo, Difel, 2009, pp. 78-79.
[9] Antropos/Relógio D’Água, 2008.
[10] Como recordamos em escrito anterior.
[11] JUNQUEIRO, Guerra, A Pátria, Europa América, Men Martins, s/d, Editor: Francisco Lyon de Castro, Ed. Nº 40 904/3619, pp. 139-160.
[12]SARAIVA, José António, Álbum de Glórias, Expresso, 2005 (Introdução – Um caricaturista prodigioso).
[13] Álbum de Glórias, Expresso, 2005, p. 70.
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