sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

NAS BRUMAS DA MEMÓRIA – Angola (1961) - I


Canta, ó deusa[1], a ira de Aquiles, filho de Peleu; ira funesta, que aos Aqueus[2] causou infinitas dores e precipitou no Hades[3] tantas almas fortes de heróis, fazendo dos seus corpos pasto dos cães e das incontáveis aves – cumpria-se a vontade de Zeus[4]. Rompeu no dia em que uma querela dividiu o Atrida[5], rei de guerreiros, e o divino Aquiles.

                                           HOMERO, Ilíada – Canto I, A Peste – A Ira de Aquiles


É desta forma sublime que Homero, o grande poeta grego, inicia o poema épico que constitui o fundamento da literatura ocidental – a Ilíada, obra imortal da Humanidade que tem como tema a mítica guerra de dez anos que as cidades-Estado da Grécia travaram contra a grandiosa cidade de Tróia. Uma guerra situada algures no segundo milénio antes de Cristo. Mas cujo poema terá sido composto, na forma que chegou até nós, por volta de 700 a.C.
Esta passagem de Homero vem a propósito de hoje perfazerem 50 anos sobre aquele que foi um ano trágico para Angola: 1961. Marcado por acontecimentos violentos, de selvajaria, autêntico terror. Que provocaram milhares de mortos.
A sublevação da Baixa do Cassange (Malange), de cariz laboral, em Janeiro desse ano, incentivada a partir do Congo ex-belga, foi o prelúdio para o assalto à Casa de Reclusão Militar, ao quartel da PSP, e à Emissora em Luanda, a 4 de Fevereiro. E à sublevação no Norte de Angola entre 15 e 21 de Março[6].
Os acontecimentos de “4 de Fevereiro”, relata-os José Eduardo Agua Lusa na sua narrativa Estação das Chuvas. Tanto Mário de Andrade, como Viriato da Cruz e o restante punhado de exilados angolanos que constituíam O MPLA ficaram aflitos quando a BBC começou a divulgar as primeiras notícias: “quem tinha tramado aquela loucura?”.
Tinha sido o cónego Manuel das Neves, um mestiço luandense e nacionalista. Consta-se, diz Agualusa, que alguns dias depois do assalto às cadeias, a PIDE encontrou catanas ensanguentadas escondidas na Igreja da Sé, onde oficiava Manuel das Neves. E muitos dos jovens que participaram na operação eram estudantes do seminário de São Domingos[7]. Foram identificadas cerimónias rituais de feitiçaria e o MPLA reivindicou a autoria da operação. Quanto a Manuel das Neves foi desterrado em segredo para Soutelo, uma pequena vila do Norte de Portugal. Morreu dez anos depois[8].
O primeiro acontecimento de cariz laboral[9] e o “4 de Fevereiro”, não teriam passado de episódios sangrentos locais, se os massacres perpetrados pela UPA (União das Populações de Angola) no Norte de Angola a 15 e 21 de Março, não tivessem ocorrido com requintes do pior que pode a alma humana cometer. O horror chegou às “portas” de Luanda provocando danos irreparáveis, principalmente sobre a população europeia.
Os massacres de 15 de Março eram de uma natureza diferente. Tinham propósitos independentistas[10] que marcaram o início de uma longa guerra subversiva que se haveria de prolongar até 25 de Abril de 1974[11].
Estes acontecimentos coincidiram com a visita que o então Ministro Adriano Moreira realizara às Províncias Ultramarinas, na época. Nas suas memórias escreve: “Não desejo relatar minuciosamente, porque largamente relatada pela imprensa, a minha deslocação a Angola, martirizada pelos acontecimentos que, sobretudo no Congo, demonstraram a selvagem determinação das formações encarregadas de aterrorizar a população, mas algum apontamento é indispensável “[12].
Dos acontecimentos conduzidos com inimagináveis requintes de crueldade[13], Adriano Moreira apenas refere Mucaba, 31 de Janeiro, Damba e Nambuangongo[14]. Em Mucaba a sua população tinha sido martirizada pelos ataques terroristas. Na noite de 29 para 30 de Abril, narra, “um grupo de verdadeiros heróis, dirigidos pelo Chefe de Posto Sena, escreveu uma página na História, numa acção seguida por grande parte da população angolana através das telefonias que captavam o posto emissor da povoação”.
O desamparo em que milhares famílias ficaram, sobretudo crianças, provocou um movimento de solidariedade, do qual Adriano Moreira registou um caso que em artigo anterior referimos: João de Mucaba.
Na verdade, o deflagrar de eventos desta natureza não constituiu surpresa para as autoridades portuguesas. Porque desde a Conferência de Bandoung, em 1955, que os nacionalismos eram incentivados por todos os organismos internacionais. Com quotas de responsabilidade em episódios apenas comparáveis aos horrores nazis. Bem narrados, no caso do Congo, no extraordinário livro de viagens de Tim Butcher[15].

Armando Palavras


[1] O poeta dirige-se a uma das musas que presidiam asa artes liberais
[2] É um dos nomes que Homero dá aos Gregos.
[3] É simultaneamente a divindade do Reino dos mortos e a residência dos mortos nas camadas interiores da Terra.
[4] Era o deus soberano, senhor do raio e de todos os fenómenos atmosféricos.
[5] Os Atridas são Agamémnon e Menelau, filhos de Atreu, rei de Micenas. Célebre pelo ódio contra seu irmão Tiestes, cujos filhos matou e lhe deu a comer.
[6]Cf. PÉLISSER, René, História de Angola, Tinta-da-china, 2009; NUNES, António Lopes Pires, Angola 1961 – Da Baixa do Cassange a Nambuangongo, Prefácio, 2005; MATEUS, Dalila Cabrita; MATEUS, Álvares, Angola 61, Texto Editora, 2011; AFONSO, Aniceto, GOMES, Carlos de Matos, Os Anos da Guerra Colonial, 2010; AGUALUSA, José Eduardo, Estação das Chuvas, Dom Quixote, 1997.
[7] AGUALUSA, José Eduardo, Estação das Chuvas, Dom Quixote, 1997, p. 107.
[8] Idem, op. cit, p. 108. Sobre esta questão, no último livro de Dalila Cabrita e Álvaro Cabrita, lançado ontem, surgem dados novos. Num relatório o cónego Neves afirma que não teve nada a ver com esses acontecimentos.
[9] Trabalhadsores do algodão do Norte de Angola.
[10] Dalila Cabrita e Álvaro Cabrita discordam desta questão. Para eles o carácter independentista estava ligado ao “4 de Fevereiro”. Os acontecimentos de Março tinham mais que ver com o carácter independentista relacionado com o povo nortenho Bacongo. A cuja aristocracia pertencia Holden Roberto, fundador da UPA, mais tarde líder da FNLA.
[11] Sobre as primeiras companhias militares que então foram deslocadas para Angola com o objectivo de dar resposta aos acontecimentos e para proteger as populações civis e o território, aconselha-se a leitura da crónica intitulada, Fragmentos terminais do Império, de Rocha de Sousa (que também publicou um romance sobre o tema), publicada no Jornal de Letras – 26 de Janeiro a 8 de Fevereiro de 2011, p. 29.
[12] MOREIRA, Adriano, Memórias – A Espuma do Tempo, p. 193.

[13] Idem, op. cit., p.196.
[14] Além da zona de Carmona.
[15] Rio de Sangue (2009).

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