quarta-feira, 22 de maio de 2024

CONVERSA FIADA

JORGE  GOLIAS 



O pior, ou uma das piores coisas que pode acontecer a um velho é não ter com quem falar. Falar ao vivo, presencialmente, porque ao telefone ou outro meio electrónico, sendo melhor do que nada, é pouco para quem tanto precisa de socializar.

Sair à rua, além de ser um bom exercício para manter todos os sentido despertos e a reagir com suficiência, serve também para ir dando um bom dia ou uma boa tarde, porque há sempre alguém que responde. Ir ao café e ser servido com um sorriso, ou um qualquer comentário mesmo sem a propósito, é quase uma bênção para quem vai ficando com os lábios pregados por falta de uso.

Encontrar um amigo e dar à língua, dizendo mal de tudo, como convém a quem sempre andou desencontrado com o poder, é sempre um bom exercício para treinar a memória e libertar algumas toxinas que sempre se acumulam.

Mas há um reverso desta medalha de bom comportamento, chamemos-lhe assim. É que nesta altura do campeonato a memória já não responde como lá para trás e os relatos das peripécias que se querem tratar (pela enésima vez, esquecendo que já contámos esta estória) já não saem com a fluidez esperada e então é precisa muita paciência para aguentar as brancas do amigo que nos quer voltar a dizer o nome do médico e da rua, sem qualquer interesse, e já nada daquilo sai fluido, virando a conversa numa fala de espessura plúmbea, prolongada demais para o fim em vista: taramelar, entreter com sentido humor, ajudar a passar bem o tempo, enfim: socializar.


Depois há os amigos que contam tudo com todos os pormenores até aqueles que eram bem escusados e que prolongam a estória para além do suportável, falando com a lentidão própria da idade, dando tantas voltas que se chegam a esquecer do que queriam contar. Aí é a altura de se dizer que sim, que o mundo está pior, e que o melhor é irmos andando que se faz tarde, pois até já doem as costas e as pernas, mas isso não se deve dizer assim claramente porque então vem outra rodada de informações “preciosas” dos melhores médicos para isto e para aquilo, do melhor osteopata, que é o de quem tem a palavra. Enfim, a vida é lixada: se não temos ninguém com quem falar - damos em malucos, se temos alguém com quem falar - malucos ficamos. Exagero? Claro que sim, mas tem nisto alguma parte de verdade.

Agora podíamos discutir que percentagem de verdade há nisto e se o saldo é positivo e credor de se ir mantendo esta actividade do social como característica básica do humano. O certo é que cada vez mais vejo as pessoas assumirem ambas a posturas que aqui se expuseram: os que anseiam por conversa, fiada que seja, e os que fogem dela com se o outro tivesse covid e andasse sem máscara!

Tudo isto veio a propósito de hoje me ter cruzado com um amigo que quando me apanha e passa toda a info que vem coligindo e que já poucos tem a quem passar, pois sabe tudo de tudo: necrologia (porque começa sempre por aqui), meteorologia (porque é sempre tema: se chove, porque já é demais, se não chove, porque já é demais), futebol (porque o Benfica não ganhou o campeonato), política (que acaba sempre na conclusão da “porca da política”).

De vez em quando, e hoje foi uma, chega (salvo seja) uma tentativa de conversa pelo telefone. Dou-me mal com o telefone, pois só o uso para qualquer contacto rápido. Mas há pessoal que o utiliza em vez do contacto físico. Ora uma conversa longa por telefone é uma experiência dolorosa, por muito atractiva que seja, e quando assim é, acaba sempre, quando acaba bem, por se marcar um encontro porque a conversa era boa e merece mais, merece olho no olho, braço no braço.

Em conclusão, porque sempre se pode tirar alguma: nestas idades lixadas, procuremos contar estórias breves, para não chatear o amigo e para lhe dar também oportunidade paritária. Deixemos os pormenores de lado porque, ou já não nos lembramos, ou vamos laborar no erro.

Por tudo isto, esta estória já foi longa demais. Tens então tu agora a palavra. Usa-a!

Carnaxide, 21 de Maio de 2024.

JG83

 

1 comentário:

  1. Mas a conversa do Senhor Coronel ainda não cansa... gostei muito de o ver na TV a relatar sobre o 25 de Abril! Bem fluido e bem lúcido, tal como esta conversa aqui acima ...

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