Por MARIA da GRAÇA
Anda, sentamo-nos ali, à sombra, conversamos um pouco. E foram. Com cuidado ela alisou o chão, empurrou os ouriços, despiu o casaco e estendeu-o. Senta-te. E ele sentou-se. Trazia os olhos cheios de azul, azul de muitos mares, carregava o sal esquecido nas pregas que a pele, cansada, deixava plena de desistências e olhares. Respirou fundo, ele. Ela, esperou.
É preciso saber esperar. É
difícil dar tempo ao Tempo, deixar que o Chronos dite as regras, que os deuses
menores se acoitem. E então, ele perguntou. Que árvore é esta? E ela explicou.
Não te lembras do castanheiro? Não te lembras de virmos com o meu avô apanhar
castanhas, não tens memória das mãos calejadas da minha avó a retalhar? E ele a
sentir o marulho, a força das ondas, o apelo da utopia, daquele lugar não-
lugar onde ele desejava tanto chegar. O cheiro do magusto a vir nas brumas da
memória, a impor-se ao acre do sal que lhe enchia a pele.
Ah, pois, castanheiro. E
apanhou uma castanha, trincou-a, e ficou a mordiscar como quem, aos poucos,
saboreia a vida. Sabes, já não me lembrava do cheiro da terra, da humidade do
chão, da imensidão da sombra destas árvores. Não me lembrava do chão que não
mexe, dos passos sem dança.
Ela abraçou-o a medo. Onde
perdera aquele homem? Ele fora seguindo o sonho, respondendo ao apelo líquido,
seguindo outras ousadias, desvendando outros longes. Ela ficara. Presa à terra,
firme como o velho castanheiro que a vira crescer, chorar, desesperar e sorrir
também. A terra e o mar, a mesma madeira que faz barcos a abrigar a sua solidão,
o vazio imenso.
Tive saudades tuas. E ele
sorriu. São boas estas castanhas. Sim, são muito boas. Felizmente, os
castanheiros não correm atrás de sonhos, não abandonam, não perseguem utopias e
protegem com picos e coragem os frutos deliciosos. Assim fossemos nós, humanos.
Ele
fechou os olhos, deixou escorregar o tronco, pousou a cabeça na saia amarrotada
e continuou a morder a castanha. Sabes, ás vezes a Terra é pequena demais
para os sonhos de um homem. É preciso partir, para se poder voltar. Já aqui
estou. Queria dizer-lhe que era tarde demais, que fizera vida, que precisava da
segurança da sua quinta. Do souto onde caminhava sempre, dos picos que sabia
como não picarem, do adormecer ouvindo o ramalhar junto à janela. Às vezes, é
tarde, disse. Os frutos também têm um tempo, e não há castanhas em Maio.
Sem
abrir os olhos, ele abraçou a coxa onde se encostara. Tive saudades tuas. Tive,
talvez, saudades dos ouriços, do ramalhar do souto. Por isso voltei. Porque não
há mais mundo do que o que as fronteiras dos afectos limita. Voltei. Ela deixou
que os dedos percorressem sem destino os cabelos pontuados de nuvens brancas.
Foi bom teres voltado, gosto de te ter aqui, de poder pisar o mesmo chão que
tu. Sabes, és um pouco como as castanhas que trincas. Vives num ouriço,
proteges-te com picos que não deixam, por vezes, entrar o meu eu. E sabes
também, já não tenho forças para tentar resistir aos picos... Ele virou-se um
pouco, agora olhar líquido, e confessou o vazio. Preciso de chão. Preciso da
essência da terra, afinal, nós somos terra também, preciso de ti. Para navegar,
agora, basta-me o teu corpo e nele quero afogar-me.
Ela fechou os olhos, entregou-se, já sem picos, livre e inteira, sob a protecção do velho castanheiro que a ninguém conta segredos alheios.
Maria Luísa Moreira - Fev. 2020
IN
QUEM ME DERA CÁ O TEMPO
A Prof. Luísa Moreira, mais parece um prometedor premio Nobel, ou um nostálgico poeta - pinga amor, desses que por aí andam incompreendidos, a ramalhar com os castanheiros de noite, no "souto" -cada vez escreve melhor...
ResponderEliminarLuísa Moreira, já tinha lido este seu texto" Não há castanhas em Maio", quando adquiri o livro do meu amigo Jorge Lage, " Quem me dera cá o tempo". Nessa altura, além de outros textos muito interessantes este foi um dos meus preferidos. Hoje, ao lê-lo novamente, neste mês de Novembro, mês por excelência da castanha, apreciei ainda mais. PARABÉNS.
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