«Surgiu uma
doutrina, acompanhada por uma crença: tudo é vão, tudo é igual, tudo
passou!» Nietzsche
José António Saraiva
Há diversas provas de que a nossa civilização está
a chegar ao fim. Uma delas consiste na perda de referências que
durante séculos permitiram organizar o pensamento.
Isso verifica-se na pintura, por exemplo. Quando era figurativa, a
pintura tinha um referencial – que era a realidade. Era possível dizer se um
quadro estava ‘bem’ ou ‘mal’ pintado, confrontando-o com a realidade que
pretendia retratar. Claro que isso não bastava. Tinha de haver algo mais, um
estilo, um toque de génio que diferenciasse um pintor dos outros. Mas esse
‘referencial da realidade’ perdeu-se. Hoje temos quadros todos pretos ou todos
brancos. Não é possível saber se estão bem ou mal pintados.
E o mesmo pode dizer-se para a escultura, para a
literatura, para o cinema ou para a música
A melodia – ou seja, uma linha de continuidade que o
ouvinte seguia e ia acompanhando – desapareceu da maior parte das músicas
contemporâneas. Muitas delas são conjuntos de sons dispersos, aparentemente sem
ligação entre si.
E na escrita verifica-se o mesmo. Um romance contava uma
história – que podia ser a história de uma pessoa, de uma família ou de um grande
amor. Mas muitos dos romances que hoje se escrevem não têm história. As frases
são agrupamentos de palavras que podem fazer ou não sentido. Também aqui o
‘referencial da realidade’ desapareceu. Não se pode dizer se a história é boa
ou má, verosímil ou inverosímil, porque deixou de haver história.
E com o cinema passa-se a mesmíssima coisa. O chamado
‘enredo’ perdeu-se. O filme negro de João César Monteiro é o exemplo extremo de
não-cinema.
Mas não só nas artes se perderam as referências. Em muitas
outras áreas se nota essa ausência de nexo, ou de sentido, ou de lógica. Por
exemplo, nos cabelos cuidadosamente despenteados; na fralda da camisa por fora
das calças; nos sapatos a que se retiram os atacadores. Tudo sinais que
pretendem transmitir às pessoas um ar negligé, desimportado, de desprezo em
relação às convenções – mas que no fundo representam exatamente o contrário: um
seguidismo cego em relação à moda…
Neste tema da falta de sentido das coisas – ou de uma
cultura do absurdo – o exemplo mais ridículo são as calças rotas. As calças
compradas na loja já rotas constituem o exemplo máximo de uma civilização que
chegou ao fim da linha e já não consegue inventar mais nada. Então põe-se a
rasgar deliberadamente a roupa nova. É o nonsense no seu máximo esplendor!
Tudo começou com os ‘jeans lavados’.
Quando os bluejeans apareceram, tinham naturalmente a cor da ganga azul.
E assim viveram uns bons anos. Mas a dada altura alguém se lembrou de dar aos
jeans novos um ar usado – e aí apareceram nas lojas os ‘jeans lavados’. Os
jeans novos, com ar de acabadinhos de sair da fábrica, tornaram-se um sinal de
parolice, de pessoa pouco ‘vivida’. E os jovens queriam parecer ‘vividos’...
Mas, como todas as modas, os jeans lavados banalizaram-se –
obrigando os criadores a puxarem pela cabeça. Mas não tiveram grande
imaginação. Dos ‘jeans lavados’ passaram aos ‘jeans puídos’, ou seja, gastos em
certas zonas para parecerem muito usados. E a machadada final foram os rasgões.
Primeiro nos joelhos, mas depois em toda a parte. Hoje vêem-se jeans a que
faltam praticamente as coxas – substituídas por gigantescos buracões! As
pessoas que as vestem tornam-se cómicas. Dão imensa vontade de rir, parecendo
palhaços pobres!
Entretanto, para dar algum sentido útil a
uma moda sem sentido nenhum, arrisco-me a fazer uma sugestão. Sugiro às empresas de confeção têxtil que façam convénios
com ONGs atuando em países do terceiro mundo para enviarem para lá jeans novos
– recebendo em troca jeans velhos e usados. Que têm mais valor do que os que se
vendem nas lojas, porque foram envelhecidos pelo uso e não de modo artificial.
E que podem inclusive ter andado na guerra, exibindo rasgões feitos em combate
ou mesmo buracos de balas.
Que tal?
Os consumidores ocidentais poderiam
satisfazer a sua ânsia de frivolidade – e as populações desses países pobres
teriam o prazer de usar calças novas.
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