"A República é um tempo velho. O que
produz a mudança é a chegada de Salazar ao poder"
José António Saraiva quis encaixar a subida ao poder de
Salazar na história do país que o criou. Descreve um ditador vindo de
um Portugal conservador, em confronto constante com outro Portugal mais
progressista.
José
António Saraiva, arquiteto e jornalista, antigo diretor do Expresso e depois
fundador do SOL, mais uma vez voltou atrás na história, com o primeiro volume
de Salazar e a sua Época, dedicado à infância do ditador e a ida de Santa Comba
Dão para Lisboa. É uma narrativa que se mistura com a história dessa época, de
lutas ferozes entre republicanos e monárquicos, tendências anticlericais e
católicas, progressistas e conservadores, desembocando numa ditadura militar. O
jovem professor da Universidade de Coimbra que então surge em cena – “penso que
Salazar era monárquico, embora nunca o afirme”, menciona Saraiva – é descrito
pelo arquiteto como uma figura “providencial”. O autor está bem consciente de
que o seu profundo interesse por Salazar corre o risco de engrandecer a
mitologia criada pelo Estado Novo em volta do ditador. “Percebo que Salazar é
um homem misterioso, com um mistério que ele cultiva mas é intrínseco à sua
figura”, explica. “Percebo-o muito bem porque sinto-me um bocadinho parecido,
também sou um pouco distante em relação às pessoas”, admite Saraiva. Que em
breve voltará a fechar-se em casa para escrever mais um livro de história, onde
vai debruçar-se sobre o regicídio.
Um dos aspetos que achei mais interessantes no seu livro foi a descrição de como Salazar cresceu num período em que a juventude estudantil estava muito radicalizada à direita. Em que havia uma clivagem geracional só que, ao contrário daquilo que vemos hoje, a juventude era uma espécie de vanguarda conservadora. Até que ponto Salazar é um produto desse ambiente?
Pergunto-me também se esse ambiente que Salazar encontra na faculdade não
está ligado ao facto de Coimbra ser a única universidade do país, de se tratar
de um período em que estudar era algo reservado às elites ou uns poucos
melhores alunos das classes populares, como era Salazar. Se não era um ambiente
conservador por ser elitista. Não havia uma questão de classe associada?
Talvez. O que me diz é verdade. Mas as pessoas do campo em geral também eram
conservadoras. Acho muita graça a uma certa reverência que existe no Vimieiro
em relação aos senhores, que ainda são um bocadinho o prolongamento dos
senhores feudais. Não existe por parte daquela gente uma animosidade, pelo
contrário existe uma certa consciência de que são os protetores. Não há
antagonismo, há uma aproximação humilde mas na expectativa de uma ajuda.
Curiosamente, quando Salazar vai para Coimbra estudar, o que lhe dizem-lhe: ‘A
minha madrinha pode ajudar-te’. A filha do senhor da terra, que entretanto se
instalara em Coimbra, pode ajudar o menino pobre que vai para a universidade.
Há uma certa aliança, em posição de desigualdade.
Muitas vezes a instauração da República é apontada como uma rutura total
com o passado, tal como o 28 de Maio. Mas no seu livro, apesar de enunciar a
intenção de instaurar uma ditadura militar no 28 de Maio como algo original, ao
mesmo tempo nota-se uma continuidade. Os conflitos são os mesmos, as mesmas
fraturas entre sidonistas e republicanos, entre um norte conservador e um sul
menos conservador, entre o rural e urbano. Até que ponto é que o 28 de Maio não
é simplesmente a continuação disso?
Eu ia um bocadinho atrás. Você mencionou algo que diria que é um dos aspetos
mais importantes do livro. Diz-se que a República é o início de um período
novo, eu acho que é exatamente o oposto. A República é a continuação de um
período velho. Na minha perspetiva, é a continuação da monarquia com os mesmos
problemas, agravados. Porque é uma rutura muito violenta, introduz um regime
muito agressivo, sobretudo quanto à Igreja Católica. Portanto, não resolve
nenhum dos problemas que vinham da monarquia constitucional, há conflitos
terríveis mas sem grandes mudanças a nível estrutural ou superestrutural, como
diriam os marxistas. Depois a ditadura militar, como você diz, também não
resolve nenhum problema. E até agrava um problema crónico do país, que é o
problema financeiro. O que é que produz efetivamente a mudança? É a chegada ao
poder de Salazar. Esse é que é o grande corte, uma ordem nova. Acrescentaria
que, entre o regicídio e a ditadura militar, Portugal vive aquilo a que chamo
de guerra civil larvar, não declarada. Se vir os acontecimentos dessa época, os
conflitos, a ditadura do Pimenta de Castro, o Sidónio Pais, a noite sangrenta,
são acontecimentos violentos que se prolongam pela ditadura militar e que penso
que poderiam ter explodido se Salazar não tem subido ao poder nessa altura
Aquelas tensões com republicanos, radicais ou não, de um lado, e conservadores
do outro, refletiam-se nas próprias Forças Armadas e poderiam ter resultado,
como em Espanha, numa guerra civil. Não acontece porque aparece esse homem, que
tem uma tenacidade enorme, julga-se investido de uma missão providencial e fez
o feito notável que é o equilíbrio das contas. Por isso, é reconhecido em todo
o país como o salvador, o ‘mago das finanças’, que pode pôr calma nisto. Dá que
pensar como é que um civil chega ao poder num tempo dominado por militares.
Isso ainda hoje faz confusão a muita gente.
Bernardino Machado [o Presidente derrubado pelo golpe de 28 de Maio], no
exílio em Paris, escreveu que a ditadura militar não é mais que um pretexto
para a tomada do país pelos conservadores. Não é isso que permite a Salazar
chegar ao poder, por funcionar entre o conservadorismo elitista como que se
cruzou em Coimbra e com o paroquialismo rural em que cresceu? Acabando por ser
a continuação do conflito anterior, simplesmente com uma vitória total de um
dos lados.
O 28 de Maio, essencialmente, não é republicano nem monárquico. Diria que nem
progressista nem conservador, embora tendencialmente conservador. É sobretudo
um movimento contra o Partido Democrático, que como sabe é o herdeiro do Partido
Republicano Português, que faz toda a propaganda da República e sob ao poder no
5 de Outubro. É um partido que depois se divide em vários subpartidos e fica
dominado por um homem com excecionais qualidades políticas, impiedoso e frio,
que é Afonso Costa.
O Lenine português, chama-lhe no seu livro.
Exatamente. Aliás, eles são mais ou menos da mesma idade e vivem a mesma época.
O Partido Democrático, pela sua omnipresença, tinha-se tornado um partido
praticamente inamovível. A direita estava muito dividida, não tinha uma
liderança única. Portanto instalou-se em setores republicanos e
não-republicanos um ódio ao Partido Democrático e a ideia de que o país não
avançava se este não fosse varrido do poder. Curiosamente, o próprio Afonso
Costa na ditadura sidonista vai para Paris e não volta para Portugal. E quando
volta, em 1923, é para dizer que não consegue formar Governo e volta para
Paris. Ou seja, há de facto um país que está bloqueado. Cria-se uma ideia muito
generalizada de que é preciso uma revolução para varrer os democráticos e o 28
de maio é essencialmente isso. É uma revolução antidemocrática no sentido de
correr com o Partido Democrático.
E antidemocrática no sentido mais amplo do termo também, diria.
Mas não só. Porque depois no seio da ditadura há duas correntes. Uma corrente
democrática, que acha que a ditadura é um pequeno interregno para voltar às
velhas instituições, reformadas, eventualmente, com outros partidos, mas com o
regresso do parlamentarismo. E há outra corrente que vai ganhar progressivamente
terreno, que é protagonizada por Salazar, para a qual a República acabou, o
parlamentarismo terminou e é preciso iniciar um tempo verdadeiramente novo. É
preciso dizer que isto não é um fenómeno exclusivamente português, dá-se depois
na Itália, mais tarde na Alemanha, na própria Espanha. Muito generalizadamente,
na Europa há a ideia de que o liberalismo tinha chegado ao fim. Que era um
tempo esgotado, que o parlamentarismo era um regime que potenciava constantes
lutas e dividia o país. Que os partidos não eram emanações da nação, eram
emanações de fações permanentemente em luta enfraquecendo a nação. Cria-se a
ideia de que é preciso encontrar um regime que ultrapasse os bloqueamentos que
o parlamentarismo revelara. Portanto, é desta segunda corrente que Salazar
parte. Você diz-me que ele é um representante de certas elites? Não sei, acho
difícil dizer isso. Acho que ele sobretudo era um homem inspirado pela Igreja,
pelas encíclicas, sobretudo a encíclica do Papa Leão XIII, que procura responder
ao marxismo e à luta de classes com uma colaboração entre as classes, a génese
do corporativismo. Também é um pacifista, um homem que tem horror às guerras e
revoluções, e isso vai verificar-se em toda a sua vida, até à Guerra Colonial,
mas isso será muito mais tarde. É obcecado com a ordem, acha que sem isso não
se constrói coisa nenhuma e portanto eu vejo mais Salazar como uma emanação do
espírito católico do que como um representante desta ou aquela elite. Até
porque ele quando chega ao poder assusta verdadeiramente alguma alta burguesia,
porque corta a direito, em nome de um suposto interesse nacional, obcecado com
as contas certas. E é esse um dos seus grandes trunfos.
Mencionou que este fenómeno não era exclusivo de Portugal. Quando lia o seu
livro recordei-me de outro, de Nicos Poulantzas, que define a ditadura militar
como uma manobra quase defensiva, uma reação de classes dominantes ao receio de
uma tomada de poder pelos dominados. E durante a República havia um país em
ebulição, com uma base social muito radicalizada à esquerda. Até que ponto é
que essa ditadura militar que surge, que depois resulta no regime de Salazar, é
resultado dos receios dos receios das elites? O que é que o Partido Democrático
fez que pudesse preocupá-las? Houve alguma tentativa de algo semelhante a uma
reforma agrária, apoios às classes baixas... Que política económica é que
assustava os senhores?
Essa é uma análise muito marxista, que acho que não se aplica muito, pelo menos
eu não a partilho. Fazendo uma radiografia muito telegráfica daquela época, o
que é que víamos? Por um lado, a Igreja e certas elites conservadoras que se
agarravam a ela. Depois tinha o Partido Democrático que ocupava o espaço
central, que era, se quiser, o partido da pequena e média burguesia. E depois
tinha, aí sim, muito radicalizado à esquerda, os anarquistas e os comunistas. O
Partido Democrático era burguês na aceção mais correta do termo, não era o
partido do povo, embora tivesse gente da arraia-miúda. Mas aquilo que se
designa por proletariado estava liderado quer pelos anarquistas, que são
dominantes na época, quer pelos bolcheviques que começavam a surgir. Portanto,
a reação militar acho mesmo que é uma reação contra aquilo a que eles chamam de
desordem. Não tem tanto a ver com uma questão de classe. Tem mais a ver com um
partido que é incapaz de manter a ordem. E os militares, como sabemos, são
muito ciosos da ordem, disciplina, hierarquia e pátria. Consideravam-se a única
força verdadeiramente nacional, a salvação da pátria, que se ia conseguir
correndo com os políticos.
Mas até hoje em dia, quando ouvimos movimentos ou partidos afirmarem-se
antipolíticos, contra a “classe política”, geralmente é reflexo de tendências
autoritárias ou daquilo a que agora chamamos extrema-direita. Enquanto à esquerda
se ouvem mais apelos contra as classes dominantes, elites, etc. Afirmar-se
contra os políticos paradoxalmente é em si mesmo um fenómeno político. Tenho
mesmo grandes dúvidas quanto à sua visão do 28 de Maio como algo pela pátria,
de forma vaga, e não como uma reação conservadora contra velhos
adversários.
Essa sua ideia à primeira vista está certa. Mas é algo localizado e
conjuntural. Porque se olhar para outra geografia, para a União Soviética, por
exemplo, que era de esquerda, existe exatamente o mesmo movimento. A favor do
partido único e contra todos os outros políticos. Portanto não é qualquer coisa
que tenha a ver com esquerda ou direita. Acho que tem a ver com poder forte ou
fraco. Você tocou num ponto muito interessante, é uma coisa em que tenho
refletido, se a democracia é mais um património da esquerda ou da direita. É a
esquerda que partilha mais intrinsecamente e intensamente a ideia de
democracia? Ou é a direita? E o que observamos ao longo da história é que isso
depende da conjuntura. No tempo da monarquia são os republicanos que querem a
democracia. Porquê? Porque são quem está na mó debaixo. Mas logo que vem a
República, você vê os monárquicos a exigirem a democracia, porque agora são
eles estão na mó debaixo. Você hoje ouve muito a direita a falar de liberdade.
Porquê? Porque acham que em determinados países e conjunturas há um domínio
ideológico, até nas instituições, um certo ar do tempo, na comunicação social,
por forças mais à esquerda. Por isso eles clamam pela liberdade. A democracia e
a liberdade são coisas invocadas sempre por quem está na mó de baixo. Os
católicos durante a República clamam muito pela sua liberdade de atuação,
porque sentem que há um poder que os oprime. A liberdade e a aversão aos
políticos tem mais a ver com a conjuntura do que com esquerda ou direita,
conservadores ou progressistas.
Quando menciona que os monárquicos clamavam por democracia, no seu livro
explica que era porque houvesse uma expansão do direito de voto, que não
votassem apenas os proprietários, por terem mais apoio em zonas rurais e isso
os beneficiaria eleitoralmente.
Sim, mas também por que eram reprimidos efetivamente. Mas sim, a República, que
sempre tinha prometido o voto universal, quando chega ao poder restringe o
voto, é só para homens com mais de 21 anos. Os desocupados não têm direito de
voto, portanto restringe o voto àquilo que era um pouco a sua massa. Porque
achavam que se o voto fosse para as mulheres, analfabetos, para o povo rural,
menos tocado pelas ideias republicanas, havia o perigo do regresso à monarquia.
Contudo, olhando para o contexto português, apesar dessas oscilações, vemos
um certo contínuo, de luta de progressistas contra conservadores. Entre
liberais e miguelistas, que depois se transforma para republicanos contra monárquicos,
que depois já é entre republicanos e apologistas de uma ditadura militar, sejam
sidonistas ou estilo 28 de Maio...
Há uma coisa que é verdade, o país está mais ou menos dividido ao meio desde
muito cedo. E são dois blocos que têm presenças muito diferentes na sociedade.
Um é miguelista, o outro é cartista ou setembrista. Um vai ser salazarista, o
outro oposição democrática. Um é republicano o outro é monárquico. Durante toda
a história de Portugal temos essa oposição entre dois grandes blocos, que muitas
vezes nem são homogéneos. Lembro-me, por exemplo, no tempo do Cavaco Silva, que
ele consegue 50% dos votos. E é um homem que, apesar de hoje dizer que não se
afirma de direita nem de esquerda, aparece como expressão da direita,
claramente. Hoje temos a direita muito rarefeita, mas se formos juntar se
calhar temos perto desse valor e à esquerda a mesma coisa. Temos o Partido
Socialista que agora cresceu muito e outras forças, que juntos dão os outros
50%. De facto na nossa história temos esses dois grandes impulsos.
Simplificando, se quiser, um mais conservador, outro mais desenvolvimentista ou
progressista. Salazar, que é de quem falamos, situa-se claramente no campo
conservador de direita. Podemos chamar-lhe – nunca quis chamar fascismo ao
salazarismo, porque acho que tem outras características – um ‘fascismo rural’,
relativamente suave, de brandos costumes. Mas muito entranhado naquilo que
vinha, cá está, do tal país conservador, que vem de trás, e que Salazar
consegue corporizar, liderar. E meter no bolso forças que, à partida, até
teriam mais poder que ele. Isso é que é engraçado.
Olhando para esse percurso, até que ponto é que esse país que parece mais
tranquilo sob controlo de Salazar não se trata apenas do resultado de um dos
lados vencer e da ditadura militar correr com as lideranças todas do outro lado
para Paris ou para o degredo? Pacificando o país ao destruir a toda a oposição.
Acho que isso está basicamente correto. Embora nos leve à seguinte pergunta:
nessas duas metades que vemos sempre em conflito, qual era aquela que nessa
época se adequava mais com o ambiente geral do país? Porque o que vemos, apesar
de tudo, é que ao contrário do que acontece em praticamente todos os países da
Europa, seja em Itália, na Alemanha, na Rússia, em Espanha, a nossa ditadura, a
ditadura salazarista, impõe-se de uma forma relativamente tranquila. É evidente
que há uma censura à imprensa, há a escola que propagandeia os valores do
regime, há uma polícia política muito entranhada na população, através dos informadores.
Tudo isso é verdade. Mas também é verdade que é uma ditadura que se impõe de
uma forma relativamente suave. Por exemplo, durante os anos do salazarismo,
morrem cinquenta militantes do Partido Comunista nas prisões, um por ano. E
morrem entre 80 e cem pessoas de esquerda.
Com muitos outros torturados pelo meio.
Sim, mas estou a falar dos que morreram na prisão. Houve torturados, sem
dúvida. O meu pai e o meu irmão estiveram presos, portanto eu tenho essa
história bem ciente na minha família. Mas quando comparamos com a violência em
determinados países, ainda hoje, olhe para a Rússia... Por exemplo, o que se
morreu aqui durante quarenta ou cinquenta anos morria-se em Itália numa noite.
Há de facto uma ditadura de brandos costumes, é um termo que a esquerda
contesta muito, mas historicamente é incontestável.
Eu apontaria que as ditaduras mais eficientes são as que conseguem reprimir
a oposição com o mínimo de sangue. E lá que a ditadura salazarista era
eficiente era. Mas isso não implica que o seu peso sobre a sociedade não seja
igualmente pernicioso.
O salazarismo, como qualquer ditadura, é mau pelo simples facto de ser uma
ditadura. Para um jornalista e e escritor como eu, um dos valores mais fortes é
a liberdade. Isso é incontestável. Depois há outro plano, que é olhar para os
resultados. É engraçado que Salazar ao princípio – e penso que isso está
escrito no livro – olhava para o regime soviético como um regime muito
eficiente. Ele diz que não há dúvida que é altamente eficiente na
industrialização, na realização de certos objetivos sociais, etc. Dava o regime
russo como exemplo, embora estivesse nos antípodas do que ele pensava. O
salazarismo na sua primeira fase também vai ser altamente eficiente. Quer
dizer, toda a Lisboa moderna que temos hoje é dessa época. É o regime que
moderniza as instituições e o país. Enquanto arquiteto, eu ainda hoje penso
como foi possível o Duarte Pacheco [ministro das Obras Públicas e Comunicações]
num período tão curto fazer tanto. Olhamos para as realizações do Duarte
Pacheco e é algo absolutamente louco. É o Hospital de Santa Maria, o Instituto
Superior Técnico, o Aeroporto de Lisboa, as gares marítimas, o Instituto
Nacional de Estatística, a Casa da Moeda, praticamente todos os grandes
edifícios que marcam Lisboa são dessa época. E tudo isso é coroado com a
Exposição do Mundo Português, em 1940, que é a cereja no topo do bolo, a
glorificação do império. Salazar, que a princípio é acusado de dar pouca
importância ao império, progressivamente vai usar isso como instrumento de
propaganda. E a Exposição do Mundo Português é o clímax do Portugal imperial.
Portanto, essa fase inicial do salazarismo, com repressão, obviamente, é uma
fase de grande atividade construtiva e modernização. De uma forma até
incompreensível, na medida em que o Salazar era um conservador, é estranho. E
há quem diga, mas não tenho elementos para o confirmar, que quando o Duarte
Pacheco morre havia alguma fricção entre esse gosto desenvolvimentista dele e o
conservadorismo do Salazar.
Ou seja, é um regime que não é totalmente homogéneo, que acomoda várias
fações dentro da direita.
Há uma história que eu acho muito ilustrativa. Há ali umas pinturas do Almada
Negreiros na gare marítima que o Duarte Pacheco diz que são fantásticas,
extraordinárias e dá o seu aval. Mas depois quando o António Ferro [o grande
propagandista do salazarismo, fascinado com o fascismo italiano] as vai ver
acha aquilo horrível, assustador... Mesmo no próprio regime, nesse período
desenvolvimentista há uma fricção. Nessa altura acho que Salazar tem um impacto
positivo na construção de um país moderno. Depois há a II Guerra, que
contribuiu muito para construir o mito salazarista, ao manter o país afastado
da guerra, que é exatamente o contrário do que os republicanos fizeram, ao mandar
os soldados para a carnificina da Flandres. E temos a fase seguinte, terrível,
que é a guerra colonial, a partir da década de 1960. Deixe-me acrescentar que
há uma ideia de que o salazarismo é antidesenvolvimentista. E de certa forma é,
acho que ele estruturalmente e conceptualmente é. Mas Portugal vai crescer mais
ou menos ao nível da Europa durante esse período, às vezes até um bocadinho
acima.
Pegando na parte do ‘mago das finanças’, que é o período em que se este
livro se foca. Descreve que Salazar ganhou essa fama por ser aquele que não tem
medo de fazer sacrifícios, creio que é essa a expressão que usa. Quando li
isso, a pergunta que me ia na cabeça era: quem é que fez esses sacrifícios?
Quem sofreu estes sacrifícios pelos quais Salazar ficou tão famoso? Que
impactos sociais é que isso teve? Hoje em dia quando vemos uma política
austeritária – que era o caso da política de Salazar, no sentido mais moderno
do termo – vemos o desemprego a crescer, cortes sociais, sofrimento, muito
descontentamento... Isso sucede-se com Salazar?
É interessante que, da mesma maneira que nós vemos a constante oposição em
Portugal entre progressistas e conservadores, ou esquerda e direita, também
temos os que defendem os sacrifícios e os que defendem as facilidades. Ainda
hoje o nosso primeiro-ministro vem acenar com facilidades e com o aumento
brutal do salário médio, e os quatro dias de trabalho, por aí fora. Basicamente
há uma parte do país, que geralmente se identifica com os setores mais à
direita, que defende o apertar do cinto. E os setores mais à esquerda que
querem exatamente o contrário, defendem uma melhor distribuição. Ora, no outro
dia li uma frase do Oliveira Martins [historiador do séc. XIX] que deviam ouvir
hoje muitos políticos. Que sem pesados sacrifícios nunca sairemos da cepa
torta. O Salazar podia dizer isto. Há de facto uma linha de pensamento que
considera que são precisos sacrifícios. É uma coisa cíclica, aparecem os dos
sacrifícios, ou da austeridade, como você diz, depois vêm os da facilidade, depois
vêm outra vez os da austeridade. E andamos nisto desde há séculos, nesta dança.
Você pergunta, quem é que pagava? A ideia que tenho da reforma fiscal que ele
faz, etc., é que pagavam todos. Ele ganha um grande respeito mesmo a nível
popular porque dá ideia de um homem que corta a direito sem olhar a quem. Há
muitas medidas que ele impõe que são mais dirigidas contra quem tem posses,
quem tem algo de seu, como o imposto sucessório, mesmo o imposto profissional,
o imposto sobre rendimentos. E de facto há um alarme nessa época. Há uma frase
que o António Ferro cita. ‘Este homem põe-nos de tanga, leva-nos à miséria’.
Mostra frieza, o Salazar tem uma frase horrível: ‘Intelectualmente sou um homem
de gelo’. Mas isso faz-lhe ganhar mais respeito, tanto pelas classes mais
populares como pela burguesia e alta burguesia. Certas declarações de
empresários, muitos críticos ao salazarismo e à questão fiscal, por outro lado
dizem: ‘Tudo bem, mas foi este homem que nos criou as condições de calma, paz e
tranquilidade que nos permitiram fazer os nossos negócios’. Saiu-se dessa
espécie de guerra civil e de revoltas permanentes, que não servia a ninguém.
Repare, mesmo em relação à Igreja, que é o setor de onde ele vem, a única força
em que se pode verdadeiramente apoiar, porque não tem um partido, é um homem
só, ele diz aos católicos para não esperarem facilidades. E que têm de ser os
primeiros a cumprir com as suas obrigações, que não vai haver favores. Há um
isolamento, Salazar quando entra no Ministério das Finanças mete-se num casulo.
Cada vez recebe menos pessoas, trabalha com um ou dois funcionários só. Dá-lhe
distância em relação aos grupos sociais.
Nota-se no José António um certo fascínio com a figura de Salazar. Até
menciona que é um livro que começou a ser escrito há 40 anos, há aqui um
interesse contínuo. Quando no livro menciona o Salazar constantemente como
alguém muito frugal, tímido, o elogio do sacrifício, dá a ideia que pelo menos
no início ele não se queria agarrar ao poder... Quando estava a escrever, não temeu
que essa descrição de Salazar, que era como ele gostava de se ver a si mesmo,
como o regime o vendia, de alguma maneira servisse para essa ‘mitologização’ da
figura de Salazar?
Como é que eu comecei a interessar-me pelo Salazar? Eu nasci ainda no salazarismo,
ainda fui vítima da ditadura de Salazar, nos primeiros tempos em que comecei a
escrever, ainda tive alguns artigos censurados. Depois vivo aqueles tempos
loucos do marcelismo e depois o 25 de Abril. Aí escrevi um artigo chamado
‘Extrema-esquerda e a terceira república’, no jornal República. No dia seguinte
liga o diretor da Bertrand, a dizer que leu, achou interessante e gostava que
eu escrevesse um livro sobre isto. A determinada altura achei que o tema não
dava para muito mais do que eu tinha escrito no artigo. Comecei a pensar de
onde é que vinha esta extrema-esquerda, que raízes é que tem. E fui para trás
do 25 de Abril, mergulhei no marcelismo. A determinada altura começo a pensar
como é que se dá a sucessão do Marcelo Caetano, que país é que ele herda e vou
ao Salazar. Vejo a transição de um país parado, congelado quase, que o Marcelo
Caetano tenta atualizar mas acontece com qualquer coisa que você tira do
congelador, apodrece rapidamente, desagrega-se e desemboca no 25 de Abril. É
assim que chego a Salazar. E percebo que é um homem misterioso, com um mistério
que ele cultiva mas é intrínseco à sua figura. É algo que eu percebo muito bem
porque sinto-me um bocadinho parecido, também sou um pouco distante em relação
às pessoas, não gosto das multidões nem das confusões, gosto imenso de me
isolar, procuro ter um raciocínio frio em relação a determinados fenómenos, não
sou uma pessoa impulsiva. Há uma identificação através de algumas
características de personalidade. Esse aspeto pessoal atrai-me. Não direi
fascínio, porque há muitas diferenças. Eu sou estruturalmente democrata e
Salazar era estruturalmente antidemocrata. Como diretor de jornal sempre
defendi uma grande descentralização, Salazar era uma pessoa obsessivamente
centralizadora. Pergunta-me se não me preocupa esse interesse... Às vezes penso
nisso, se a imagem desapaixonada que eu procuro dar do Salazar não terá o
efeito de contribuir um bocadinho para o próprio mito. Ao desmontar certas
coisas que considero erradas do antifascismo, não faz sentido pintar aquele
regime de cores negras e terríveis, sem perceberem aquele outro lado que lhe
tenho falado, que faz com que Salazar cavalgue o poder e tenha um impacto
positivo nos primeiros anos. É um risco que acho que correm todos os
historiadores que se atiram à história de uma forma desapaixonada e sem
preconceitos ideológicos, ir um bocadinho às raízes e perceber pela sua cabeça
as figuras, a sua época e papel na história. As conclusões a que chegam nunca
são as simplificações que depois a história faz. Tento ver um Salazar mais
complexo. Por um lado ditador, por outro um homem que trouxe a ordem, evitou a
guerra e valorizou as instituições, algumas delas negativas, como a censura.
Ele de facto tem um desdém profundo pela democracia. Dizia, curiosamente, que a
democracia era um regime que não resolvia problema nenhum, mas fazia uma
ressalva, que a democracia só funciona na Inglaterra e sobretudo nos Estados
Unidos. Como quem diz que os latinos nunca se adaptarão à democracia, que isto
será sempre o caos.
Que conveniente.
Daí as perseguições políticas, a proibição dos partidos. E depois,
essencialmente a incapacidade de resolver a Guerra Colonial. Que eu por um lado
percebo. Ele recebeu essa herança dos seus antepassados, um império que
glorificou, e depois não quis ser o coveiro dele. Mas meteu o país num beco em
que só podia acabar da forma em que acabou.
Perguntava-lhe isto porque, sobretudo no início do livro, quando há a descrição
da subida ao poder de Salazar, daquele ministro das Finanças que ninguém
conhecia, fala dele como um jovem humilde, discreto... Eu estava a ler e só me
apetecia repetir o que o padre Matteo, colega de Salazar em Coimbra na
‘república dos grilos’ lhe disse: ‘A mim não me enganas, por trás dessa frieza
há uma ambição insaciável. És um vulcão de ambições’. De facto acho que essa
imagem do Salazar humilde serviu como fachada, para esconder um homem que fez
tudo para se manter no poder durante décadas. Ninguém fica no poder tanto tempo
se não for ambicioso e muito menos humilde do que quer parecer.
É muito engraçado que faça essa pergunta. Eu acho que as duas coisas que você
disse são verdade. Dada a personalidade de Salazar a vinda para Lisboa, a luta
política, tudo isso o horrorizava. Ele tem cartas que parecem muito genuínas
quando é eleito deputado, logo no tempo da República, que são horríveis. Ele
diz que sente que já começou a mergulhar na lama, a política vai fazer de mim
um infeliz. São cartas a uma amiga, uma pianista amadora de Coimbra, e você
fica convencido que é genuíno. Corresponde à sua personalidade, que é
ensimesmada, tímida, era um menino magrinho, frágil, que não jogava futebol e
estava sempre um bocadinho à margem. Isto casa com esta pessoa, que fez o seu
cursozito em Coimbra e cuja ambição é ser professor. Penso que isso é verdade.
Mas, simultaneamente com isto, convivia um vulcão de ambições, um homem
desejoso de poder. E acho que há um momento chave, que é quando ele é convidado
para uma reforma das Finanças, a cuja comissão preside, desenha a reforma e esta
é rejeitada liminarmente pelo então ministro das Finanças, Sinel de Cordes, que
era um conservador assumido, monárquico, etc. Porque é que é um momento chave?
Porque Salazar tinha acedido vir para Lisboa, cria diplomas que considera
essenciais e aquilo tudo vai para o cesto dos papéis. Ele fica profundamente
ferido com isso, por questão pessoais, porque é muito orgulhoso, por razões
profissionais, porque achava que punha em causa a sua capacidade e até pelo
modo como é tratado, foi escorraçado como um pobre diabo. Aí ele muda. Em plena
ditadura militar ele convence-se de que tem a solução certa para o país e que
se tiver uma oportunidade não a vai deixar escapar. Há um novo Salazar que
nasce nessa altura, que tem um misto de vingança, convicção de que tem as
ideias certas e desejo de as pôr em prática. Aí escreve uma série de artigos de
jornal que significa pôr-se na praça pública e demonstra ambição. Quando começa
a governar, então aí não tenho dúvidas, ele convence-se que é o homem
providencial, que qualquer que venha depois dele só vai estragar o trabalho que
ele fez. Mais para diante na vida, ele habitua-se a governar e já não sabe
fazer outra coisa. A verdade é essa. Ele acostumou-se de tal forma ao poder
que, apesar de dizer constantemente que o poder o fazia infeliz, que queria era
voltar para terra, para Santa Comba Dão, tratar da sua quinta, deixou de
conseguir imaginar-se fora do poder.
Aproveito para lhe perguntar quanto a essa tal chegada do Salazar ao poder.
Fá-lo numa época dominada pelos militares, que certamente não tinham grande
vontade de perder a sua preponderância.
Falo disso, no segundo volume, de facto é impressionante como um civil, que nem
sequer tinha feito a tropa, consegue ir triturando sucessivamente os militares
até chegar a presidente do Conselho de Ministros. Estamos na ditadura militar,
1928 a 1932. Vemos que ele vai suscitando sucessivos braços de ferro com o
primeiro-ministro, e o Óscar Carmona, quando a situação chega ao limite, em
desespero opta por Salazar e corre com o militar que é primeiro-ministro. Isto
verifica-se com três militares seguidos: Vicente de Freitas, Ivens Ferraz e
Passos e Sousa. E o último militar – isto é uma coisa que nunca foi dita – faz
um acordo com Salazar no sentido de estar apenas temporariamente no poder e,
antes de sair, passa-lhe o poder para as mãos. Isto explica uma coisa muito
engraçada, que é que Salazar, enquanto ainda é ministro das Finanças, começa a
redigir a Constituição. Ora, só fazia sentido ele fazê-lo se tivesse uma
promessa de ser primeiro-ministro a seguir. Se fosse um ministro das Finanças
transitório estava a fazer uma Constituição para outra pessoa. Essa escalada do
poder, sempre com apoio de Carmona, é extraordinária. Ainda mais porque, quando
Carmona morre, Salazar diz: ‘Acho que ele nunca gostou de mim’. Ou seja, são
dois homens que não gostam um do outro, mas que se apoiam mutuamente num
período crítico, porque sabem que é o outro que o pode sustentar no
poder.
Sei que o seu próximo livro será sobre o período da monarquia, até ao
regicídio. O que podemos esperar?
O novo livro nasce deste, de alguma maneira. Como percebe, os meus livros
normalmente vão andando para trás. Este em princípio chamar-se-á O Homem que
Mandou Matar Dom Carlos. Começa no regicídio, depois faz uma grande
retrospetiva por toda a vida do Dom Carlos, desde o nascimento no Palácio da
Ajuda, ao casamento com a Dona Amélia e todo o martírio que é o seu reinado,
que é terrível. De facto é um homem com um destino político desgraçado, tudo
lhe acontece. E depois acaba exatamente com a questão de quem foi o homem que
ordenou a morte do Rei. Posso adiantar que hoje estou absolutamente convicto
que foi o Afonso Costa. Como lhe chamou, um ‘Lenine à portuguesa’. O Afonso
Costa primeiro prepara o assassínio do Dom Carlos através de discursos muito
inflamados no Parlamento e depois participa nas reuniões em que se decide na
morte de Dom Carlos. Isso está confirmado. Penso que ele pertence à Carbonária,
embora nunca se tenha sabido quem era o quinto homem da Carbonária, mas estou
convencido que era o Afonso Costa. E depois há muitos mais elementos, como a
pistola que mata o Dom Carlos, que era propriedade do Afonso Costa.
A sério? Como se estabelece isso?
Porque apareceu e fez-se a análise da bala e da pistola.
E estava registada em nome do Afonso Costa?
Exatamente. Curiosamente, ele depois vai fazer discursos durante a República
desculpabilizantes do ato que ele próprio tinha instigado ou ordenado. Vai
reabilitar os regicidas e chega a dizer que um povo tão honrado como o
português matou o seu Rei que era um tirano.
Então espera-nos uma espécie de CSI regicídio.
Sim, mais ou menos, pode dizer-se isso, num aggiornamento da terminologia
[risos].
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