quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

MÁTRIA

   Serra do Marão

JORGE  GOLIAS


Nome dado à primeira ópera, digamos que transmontana, hoje ensaiada em Vila Real, como parte do programa da passagem dos 20 anos do Alto Douro Vinhateiro, a mais antiga região vinícola demarcada do mundo, como Património Mundial da UNESCO. Realizada por Eduarda Freitas que reuniu naquela cidade um elenco de luxo para produzir aquilo a chama “a arte das artes”, com música de Fernando Lapa. A realizadora convocou personagens de vários contos de Miguel Torga, mantendo-lhe as falas, para os situar em outro palco das duas histórias, o palco da Mátria.

Dez anos passaram desde a ideia inicial, autorizada pela Clara Rocha, filha de Miguel Torga, até que se chegará ao dia 17 de Dezembro 2021, o dia da estreia. Quem me dera lá estar, em Vila Real, a cidade onde estudei, onde me estreei na política, onde joguei futebol e andebol, onde passei longas noites a jogar o bilhar a dinheiro, onde degustava os covilhetes no intervalo da manhã das aulas do Liceu CCB, e de onde parti para ver o mar pela primeira vez.

Foi Eduardo Lourenço que disse que para Torga Portugal mais do que uma pátria era uma mátria, palavra também do gosto de Natália Correia, ela que declamando quase sugeria uma mátria a cantar.

Sete cantores de ópera e dois coros, um deles de Vila Real, com o povo a cantar. Há então povo em palco ao vivo e representado pelas personagens torguianas. Ou seja, a ópera aqui a sacralizar um povo e um território e ao mesmo tempo a dessacralizar a sua própria essência projectando-se na terra e na população. A ópera popular, assim seja.

E, de Vila Real para o mundo, a consagração daquela célebre frase de Torga “O Universal é o Local sem paredes”, querendo assim dizer que um conto bom é bom em qualquer local, seja na sua aldeia de S. Martinho de Anta ou em Nova Iorque.

Serra do Marão
“Vou falar-lhes de um reino maravilhoso”, assim começa a ópera, com a frase mais emblemática de Torga. A Adolfo Rocha não chegou a dureza do seu nome original e adoptou Torga por ser a urze local, que tem grossa raiz de arbusto bravio da montanha. O seu fascínio pela cultura helénica leva-o a adoptar o mito de Anteu, filho de Poseidon, deus do mar e da geia (a mãe terra). Gigante, era o guardião do deserto líbio e a sua força provinha da geia, ou seja, sempre que o seu corpo tocava a terra ganhava mais força ganhando as pelejas. Até que surgiu Hércules que, percebendo esse segredo, o levantou até perder as forças, perdendo o combate. Torga não se deixou levantar e sempre que fraquejava voltava às origens bebendo sofregamente a água das fontes, e caminhando pelos montes e vales, ia recebendo a bênção do seu reino maravilhoso. E quis ser Miguel porque todos aqueles que ele mais admirava eram Miguéis: Miguel Ângelo, Miguel de Cervantes e de Miguel de Unamuno. Porquê estes três? Vejamos:

Há 82 anos, Torga estava preso: Lisboa, Cadeia do Aljube, Natal de 1939, escreveu ele o poema Pietà, escultura que Miguel Ângelo esculpiu directamente da pedra, sem modelos, como todas as outras (Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,/ Da pedra e da tristeza, no teu canto,/ Comigo ao colo, morto e nu, gelado,/ Embrulhado nas dobras do teu manto.). Torga visitou e estudou as obras de Miguel Ângelo em Roma e em Florença e dedicou-lhes vários poemas.

De Miguel de Cervantes Torga sorveu a força do clássico da literatura, Don Quixote de La Mancha, o primeiro e melhor romance moderno, o segundo livro mais traduzido do mundo, estando a Bíblia em primeiro lugar.

Miguel de Unamuno, um dos mais destacados pensadores espanhóis que fascinou Torga e que chegou a citar no poema Unamuno dos Poemas Ibéricos (Dom Miguel…/ Fazia pombas brancas de papel/ Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…/ Unamuno Terceiro! / Foi Cid o Primeiro,/ D. Quixote o Segundo).

Torga, cujo território visitei recentemente e sobre o que vi escrevi frases fortes para gravar na pedra, como gravei na memória a vista telúrica do Alto da Galafura e como fixei admirado a beleza do Marão frontal mirando-me da sua majestosa altitude. Marão que sempre entendi significar Mar Alto e que creio ter sido assim crismado pelos marinheiros transmontanos das caravelas quando no regresso a Ítaca já não viam as ondas do mar alto, mas viam outrossim a onda deste marão de terra mátria.

 

Carnaxide, 14 de Dezembro, de 2021, 82 anos depois da prisão de Miguel Torga no Aljube

                                                                                                                                                        JG80

3 comentários:

  1. O Excelentíssimo Coronel Jorge Golias tanto é coronel, como poeta, como um grande Marão!
    Abençoado Transmontano ...
    Feliz Natal !

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  2. Agradecido pelo seu comentário José Matos.
    Feliz Natal
    JG80

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  3. Belíssima crónica de um amigo do nosso chão, Engenheiro Jorge Golias que não deixou passar uma data de sofrimento para o nosso grande "artista" (era, como artista que gostava de ser conhecido, porque a escrita é uma grande arte só ao alcance de poucos, como aqui se pratica pelos invocado e evocando) Miguel Torga.
    Mas, mais que o sofrimento no Aljube, roeu-lhe a alma o facto de estar tudo conjugado a nível internacional e alguns bons amigos em Portugal, alguns membros da igreja, para lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura, e, pasmem-se, o PCP moveu todas as influências para que a candidatura de Miguel Torga não fosse considerada, segundo me confessou em conversa privada o Padre Avelino. O grande escritor, Miguel Torga, não levou mais nenhuma amargura, para a tumba fria.
    Não deve haver maior pulhice no burgo lusitano, no século XX.

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