A descoberta de
nossling
03 Maio 2021
Nós, os portugueses, nascidos ou
não no território à beira-mar plantado, que tantas vezes ouvimos os nossos
compatriotas a falarem mal de Portugal ao comparar-nos, sarcasticamente, com
outros países do mundo, não só devíamos ter consciência da nossa falta de
conhecimentos como, sobretudo, nos sentirmos vaidosos e embevecidos quando
alguém, numa aldeia recôndita da imensa Índia, diz com orgulho que o português
é a sua língua.
Nunca é demais recordar que foi
graças ao persistente empenho do meu amigo Homem Cristo Prazeres da Costa que o
jornal O Heraldo, de Goa, introduziu uma secção semanal em português, a partir
de 6 de Maio de 2020.
Os colaboradores desta meia página,
cuja maioria vive em Goa, têm-nos brindado com vários artigos de qualidade,
deixando-nos surpresos com a beleza de alguns textos literários, produzidos
numa terra onde Portugal deixou de governar desde 18 de Dezembro de 1961.
Creio que o fazem por se sentirem
dotados do espírito universalista, serem amantes da cultura e simpatizantes da
língua portuguesa, independentemente da religião que professam, da
nacionalidade possuída ou da direcção tomada pelos ventos da História.
É através da utilização
predominante da língua portuguesa, acoplada à plataforma criada por Cristo, que
se tem encurtado distâncias abraçando continentes; servido de ponto de encontro
aos amigos desencontrados há muitos anos por circunstâncias da vida; matado
saudades com recordações da juventude e revelado que é possível, com parcas
palavras, escrever textos literários de substancial valor.
Todo este razoado introdutório vem
a propósito do artigo do Padre Joaquim Loiola Pereira, intitulado "Korlai,
onde o português é língua indiana."
Foi em 2015 que visitou aquele "lugarejo", mas só recentemente nos deu a conhecer a razão da visita e a importância do local.
Diga-se em abono da verdade que não
se tratou de algo inédito, pois em 1996 J. Clancy Clements havia publicado o
livro The Genesis of a Language: Formation and Development of Korlai
Portuguese.
Apesar da existência deste louvável
precedente, aquando da sua visita à aldeia de Korlai, com o objectivo de
encontrar vestígios orais da língua portuguesa, ao escutar o linguajar dos
habitantes locais, um dos méritos de Joaquim Loiola Pereira residiu no facto de
não se ter preocupado, em demasia, com o estudo dos aspectos linguísticos do
idioma falado, em termos etimológicos, semânticos ou outros, mas ter procurado
ler nas palavras pronunciadas os sentimentos das pessoas.
Com esse tipo de abordagem
despertou interesse e motivou os leitores a
visitarem Korlai.
Acompanhado do Padre Sebastião
Mascarenhas, quando avançaram a pé em direcção às ruas estreitinhas da aldeia,
deixando a viatura nas redondezas, porventura iam ansiosos porque não deviam
ter a certeza de se poder escutar, em estreitas vielas, palavras pronunciadas
em português.
Sem contactos previamente
estabelecidos, ao escolherem este tipo de pesquisa de risco assumido, não
podiam ter tido melhor surpresa do que comprovar, logo à aproximação das
primeiras casas, que até o cão percebia a linguagem de Camões, pois ao animal
que ladrava incessantemente, anunciando a presença de intrusos, o dono da casa
grita: "Fique calad! Fora vai!" E o animal, obediente, pára de
ladrar.
Estabelecidos os contactos, os
curiosos visitantes constataram que neste vilarejo com fortificação própria,
situado no coração de Maharastra, vizinha da antiga fortaleza de Chaúl,
"toda a gente, velha e nova, ainda fala português, ou aquilo que dela
resta."
Todavia, por estar cercada pelo
marata, língua dominante, apuraram que "fora de Korlai, na escola, no
mercado, no trabalho, falam todos o marata,
mas em casa é sempre o crioulo
português".
Isso acontecia porque, embora as
fortificações portuguesas tivessem sido abandonadas no século XVIII, houve
casais europeus que preferiram permanecer no local assim como os descendentes
das alianças matrimoniais realizadas entre europeus e mulheres locais,
originando "uma curiosa comunidade luso-indiana" de cerca de
oitocentas pessoas.
Ao se apresentarem como sacerdotes,
tiveram as portas abertas e os vizinhos acorreram porque "este padre de
Goa vei, quer ouvir noss combarsa; vem, combars faça."
Nas diversas conversas entabuladas
foi-lhes pedido para contar em português. Nessa altura, ouviram-se novos sons
lusos naquele confim do mundo: "um, doiz, trez, catr ... disnov, vint, vintaum,
vintadoiz, vintatrez."
Para os sacerdotes goeses, a
musicalidade das sonoridades posteriores ganharam ainda maior relevo e uma
doçura especial, por terem comprovado que uma das bandeiras da expansão
portuguesa, a difusão da fé católica, também estava presente em Korlai, pois em
resposta a uma pergunta repetiram dizendo "Rezar, sim: em nome do Padr, do
Filh, do Esprit Sant Amén."
Perante este testemunho religioso,
o Padre Joaquim sentiu um nó na garganta, pois acabara de presenciar que
"falavam em português também com Deus!"
Visitada a igreja, Nicolau, o
mestre do canto deste pequeno templo de Korlai, explicou que, para a realização
das missas, o padre vinha de "Bombaim" e só falava marata, mas o
canto litúrgico era em nossling. Os visitantes observaram que as páginas do
manual do canto estavam escritas em caracteres indianos, ou seja, o português
encontrava-se escrito em devanagárico.
No decorrer da frutuosa visita, os
dois padres, depois de contactarem e dialogarem com numerosos populares,
cruzaram-se com miúdos a jogar à bola. Pela sua importância não resisto em
transcrever, na íntegra, o texto que retrata as interlocuções então
estabelecidas:
«Chegámos a um espaço aberto onde
estavam poucos miúdos a jogar à bola. Sons familiares, mais uma vez: "Pass,
passaqui! Burr donde! Depress! Merd!" Parámos e chamámos pelos garotos. E
perguntámos, em modesto marata: "que língua é esta que vocês estão
falando?" "Nossling," disseram.
"Nossling?" - Repetimos.
"Sim, Nossling, Purtuguêz!" - "Purtuguêz??? Que
é isso: alguma língua
estrangeira?" - Indagámos. Houve um protesto geral!
Um deles pontificou, em bom inglês:
"Purtuguêz is an Indian language!"» Se servirmos o exemplo da
descoberta de nossling em Korlai, podemos inferir que os amantes da lusofonia
têm um vastíssimo campo para desbravar por esse mundo fora, porque a riqueza de
Portugal não está apenas no presente mas, sobretudo, no seu passado grandioso,
que devia encher de orgulho todos os portugueses.
Volvidos tantos séculos após a
gesta dos descobrimentos, para se cumprir Portugal, falta ainda aos afoitos
portugueses partirem à descoberta das marcas identitárias deixadas pelas almas
lusitanas espalhadas pelo mundo.
Historiador
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