José Manuel Fernandes - OBSERVADOR
10 mar 2021,
00:38121
Vai por aí um grande enlevo com o PCP. Eu
sei que o partido fez 100 anos, uma bonita idade. Eu sei que o
primeiro-ministro aprecia a forma discreta e, reconheça-se, séria com os
comunistas negoceiam, sem números para a bancada à moda do Bloco. Eu também sei
que Jerónimo de Sousa tem um lado de avô inofensivo que desarma maiores
alarmes. Mas daí a passar ao PCP um estatuto de partido moderado e democrata a
quem devemos estar agradecidos – sim, isso mesmo: agradecidos – vai uma grande
distância.
Que Daniel Oliveira escreva sobre o que a democracia deve ao PCP faz parte da ordem natural das coisas. Afinal de contas ele cresceu
no PCP e mesmo tendo deixado de ser comunista nunca deixou de ser aquilo a que
antigamente se chamava um “compagnon de route”. Já bem diferente é constatar a
necessidade de Miguel Esteves Cardoso dar vivas aos comunistas e desejar que ainda cá estejam daqui por cem anos. Mais extraordinário
porventura ainda será olhar para uma banca de jornais e ler, sobre uma
fotografia que ocupa toda a largura de uma primeira página, um título
extraordinário, sugerindo que o PCP anda há um século “em busca de uma sociedade que ainda
não existe”. Como? Mas então se há cem anos o PCP
nasceu precisamente em nome de uma sociedade que já estava a ser construída, a
sociedade soviética? Mas se quando a Revolução Russa fez 50 anos (em 1967),
o Avante!, ainda clandestino, dedicou uma edição inteira às
maravilhas da pátria do socialismo (quem tiver dúvidas, é consultar a edição que está online), em que curva do caminho se perdeu então essa sociedade ideal?
Podia continuar, mas chega. O meu ponto é
simples: se o PCP continua a ser aquilo que é, ou seja, um partido comunista
que se mantém fiel ao marxismo-leninismo – e basta ler a edição deste mês de O Militante, para o confirmar, nomeadamente os artigos O PCP faz 100 anos – O caminho que
nos trouxe até aqui e Lénine, o leninismo e a Revolução
Portuguesa –, então porque tratamos um partido que tem um sonho
totalitário com mais benevolência do que os extremistas de sinal contrário? A
explicação talvez se encontre no facto de esta gente não só não ler o que o PCP
escreve para os seus, como nunca ter lido Lenine e, por isso, não saber que a
arte da dissimulação é inata ao leninismo.
Todos os políticos mentem, uns mais do que outros, mas quando George Orwell
escreveu 1984 não estava a pensar em políticos normais. O doublespeak que
ele imaginou não implicava apenas tratar “cortes” por “poupanças”, como há quem
com muita desonestidade intelectual sugira – o doublespeak passava
por dizer que paz era guerra e amigo era inimigo conforme
as conveniências do momento e remetiam directamente para a forma como, na URSS
estalinista, se controlava a linguagem e se mudavam as políticas da noite para
o dia.
Isto porque o que conta, para os comunistas, são os fins a alcançar, os
meios não interessam. Por isso aquilo que se ataca hoje, pode-se defender
amanhã. Em 1975, por exemplo, o PCP tentou primeiro evitar as eleições para a
Assembleia Constituinte, depois contrapôs-lhe sempre a legitimidade das ruas e
da “aliança Povo-MFA”, no auge da tensão chegou a levar os sindicatos da
construção civil a cercar o Parlamento, tudo isto num tempo em que Álvaro
Cunhal dava entrevistas garantindo que em Portugal não haveria uma “democracia
burguesa”. Depois, passado o 25 de Novembro e aprovada a Constituição, o PCP
trocou de barricada e encontrou no texto fundamental a sua nova trincheira. É
um salto estratégico que Carlos Brito descreve muito bem nas suas
memórias, Álvaro Cunhal – Sete Fôlegos de um
Combatente, mas poucos conhecem os detalhes desta
viragem, muitos julgando que o mantra de João Ferreira na última campanha
presidencial sempre foi o do partido. Não, não foi: só se tornou linha do PCP
depois da derrota do PREC.
Mas isto é um detalhe, é política do dia
a dia até porque se passa em democracia e com o PCP fora do poder. Diferente,
muito diferente, é quando os comunistas tomam o poder. O princípio é sempre o
mesmo – os fins justificam os meios. Quaisquer meios. Ora como os comunistas
acreditam que estão do lado certo do História, acreditam até que a sua acção
acelera História, ainda se sentem mais legitimados a actuar sem limites em
função do seu “ismo”. É certo que fazer mal que não lhes foi exclusivo, agindo
com o mesmo racional amoral de outros militantes extremistas, como escreveu
Isaiah Berlin: “Causar dor, matar e torturar são actos geralmente condenados;
mas se não foram cometidos para meu benefício pessoal e sim em prol de um ismo
– socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, de crenças religiosas
fanáticas, do progresso, ou do cumprimento das leis da História –, então são
actos aceitáveis”.
Quem levou esta lógica a maiores extremos foram os totalitarismos do século
passado, totalitarismos de que nos dias de hoje só sobram algumas aberrações
comunistas, como a da Coreia do Norte. Mas se quisermos ter uma ideia de como
este tipo de raciocínio toca mesmo as mentes mais brilhantes, basta citar a
posição de um comunista não-arrependido, o famoso historiador inglês Eric
Hobsbawn que, ainda em 1994, numa altura em que já não havia qualquer dúvida
sobre os crimes e os horrores do comunismo e do estalinismo em particular,
afirmou que, mesmo que tivesse sabido, em 1934, que “estavam a morrer milhões
de pessoas no decorrer da experiência soviética”, não teria deixado de apoiar
Estaline porque “a hipótese de poder nascer um mundo novo de um grande
sofrimento continuaria merecer ser apoiada”.
A nossa Rita Rato, hoje directora do Museu do Aljube com o beneplácito da
câmara de Lisboa e da intelligentsia lusitana, quando não quis
responder sobre o que pensava do goulag não foi seguramente porque
desconhecesse a sua existência – foi porque lhe faltou a frontalidade de
Hobsbawn. Posso estar enganado – o que duvido –, mas se a antiga deputada for
realmente uma crente (o comunismo tem muito de fé), então ela também achará que
há sacrifícios que são aceitáveis, também pensará que há inimigos que têm mesmo
de ser exterminados e que, numa fase qualquer da transição para o comunismo,
terá mesmo da haver ditadura do proletariado.
Até lá, a nossa Rita, mesmo directora de um museu do Estado, talvez siga o
velho e eterno princípio dos comunistas de contar sempre a história à sua
maneira, mostrando umas partes e omitindo outras, como o seu partido acaba de
fazer no livro comemorativo dos cem anos, onde ocorreu um “apagão” que fez
desaparecer inúmeros críticos.
Dir-me-ão: mas há tantos comunistas
que são tão boas pessoas, tantos que tão genuinamente se preocupam com a sorte do seu semelhante e
se inquietam com os destino dos mais desvalidos, como pode um partido de gente
assim ser como o estás a descrever? A resposta é fácil e encontramo-la nos
livros de História: o problema é que as ideias têm consequências e ideias
perigosas, mesmo que aparentemente bem intencionadas, podem ter consequências
terríveis. O marxismo-leninismo em concreto sempre teve consequências terríveis
– talvez 100 milhões de mortos de consequências terríveis. Nenhum homem bom evitou nesses regimes que muito sangue fosse derramado.
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