Rui Ramos - OBSERVADOR
1/3/2019
O nepotismo
governamental define uma democracia capturada por uma facção política dedicada
a vincular a si os grupos de interesse instalados no Estado, na banca e nas
grandes empresas.
Há uma semana
que a imprensa comenta a endogamia do governo. Nunca um conselho de ministros
terá sido cruzado por tantas relações de parentesco. Entretanto, já muita gente
explicou o mau aspecto e as sérias inconveniências da situação, e não vale
dizer que Trump também tem uma filha e um genro, a não ser que a presidência americana
seja agora padrão de virtude para o PS. Também não vale menosprezar tudo isto
como simples coincidência: não, não acontece por acaso os ministros serem
parentes uns dos outros. Mas o ponto mais importante dessa história é outro: é
que todos os reparos terão sido certamente previstos pelos nossos governantes.
Mesmo assim, optaram por promover a filha, dar o lugar à mulher, escolher o
marido, seleccionar o irmão, premiar o velho amigo. É óbvio que o preço
político de arriscar um ar de nepotismo pareceu mais baixo do que o de procurar
pessoas fora do círculo familiar dos ministros. É sobre isto que importa
reflectir.
Estes
ministros andam pelo governo desde há quase meio século. Vieram em 1995 com
Guterres, como secretários de Estado e assessores. Em 2005, regressaram com
Sócrates, os secretários de Estado já como ministros e os assessores como
secretários de Estado. Em 2015, instalaram-se outra vez nos gabinetes. Podiam
ter ido buscar caras novas. Foram, mas sem sair dos subúrbios da amizade
íntima, do matrimónio ou da consanguinidade: o núcleo reproduz-se a si próprio,
através de relações familiares e de visitas lá de casa. Tudo isto vai muito
para além do problema do corporativismo que gera dinastias de médicos,
advogados e catedráticos. Uma filha de médico ser médica é uma coisa; uma filha
de ministro ser ministra no mesmo governo em que o pai é ministro é outra
coisa. No primeiro caso, é uma questão social; no segundo, é uma questão
política.
Na mesma
semana, lembrámo-nos que o presidente do Azerbaijão nomeou a
mulher vice-presidente. Não precisam de me dizer que Portugal não é
o Azerbaijão. Mas tal como no Azerbaijão, o parentesco governamental sugere um
grupo restrito e desconfiado. Este é o ponto historicamente importante: ao fim
de quase vinte e cinco anos de poder, esta agremiação de oligarcas do PS, a
mais bem sucedida na democracia portuguesa, está cada vez mais fechada sobre si
própria.
Isto tem
obviamente uma razão de ser. Em 1995, Guterres e os seus amigos chegaram com
uma ideia: a chamada Terceira Via. Em 2001-2002, tudo falhou, com o primeiro
estrangulamento financeiro do Estado. Em 2003, o caso Casa Pia convenceu-os de
que estavam a ser perseguidos. Em 2005, voltaram com um desígnio de controle
puro e duro. Sob Sócrates, operaram à bruta. Sob Costa, tentaram ser “hábeis”.
O método, com mais ou menos veludo, foi sempre o mesmo: o domínio do Estado, e
o domínio do Estado sobre a sociedade e a economia. Ora, num projecto destes, o
partido importa naturalmente menos do que a clique, e a comunhão doutrinária
conta menos do que a relação pessoal. Daí que a sua área de recrutamento
não vá além de velhos amigos, antigos protegidos, e, claro, parentes.
O nepotismo
governamental define o estado da nação: uma democracia capturada por uma facção
política de tipo familiar, dedicada, num tempo de estagnação mal disfarçada
pela conjuntura internacional, a vincular a si os grupos de interesse
instalados no Estado, nas grandes empresas, e na banca. Demasiado frágeis, as
instituições e a sociedade civil não são obstáculo para este senhorio
terceiro-mundista. PCP, BE e o PSD de Rui Rio já a pouco mais aspiram do que a
aliar-se às famílias do poder. Enfraquecida, manietada, sem voz, a não ser a
voz inorgânica das redes sociais, a sociedade aguenta. Estamos assim.
Sem comentários:
Enviar um comentário