sexta-feira, 13 de junho de 2014

A Democracia e a “Louca festa de chá”

Elogio Fúnebre de Péricles
Quando se trata o tema, devemos ter em conta o enquadramento histórico, porque para compreendermos qualquer instituição humana devemos conhecer o seu percurso na História – como apareceu e como evoluiu. Não por acaso o próprio Marx, um fervoroso defensor da revolução, informou-nos que para mudar o mundo, primeiro temos de o compreender. Assim sendo, a palavra “democracia” pode, em boa medida, significar uma e muitas coisas, tornando-se uma palavra promiscua, muitas vezes apenas retórica.
Se as religiões monoteístas (que influenciaram o mundo), nasceram a Oriente. A democracia nasce na Europa. É património europeu, tornado modernamente em património mundial.
Primeiramente é usada pelos gregos, exactamente por Platão e Aristóteles. Se o primeiro lhe cerra um ataque feroz, o segundo vem em sua defesa. No grego demos, a Democracia é tão só, a multidão, a maioria. E Kratos, significa poder. Desta feita, Democracia seria simplesmente o poder da maioria (ou da multidão).
Platão atacou o conceito por defender o governo dos pobres (no sentido de instrução, educação) e ignorantes sobre os instruídos e conhecedores. Nos Diálogos, o filósofo grego denuncia a democracia como sendo o poder da opinião sobre o conhecimento. Ou seja, a democracia era o poder (melhor dizendo, a anarquia) da mera opinião.
Dizia que apenas aqueles com conhecimento filosófico estavam aptos a governar. A excelência e a perfeição pessoal eram as virtudes ideais dos aptos para a governação.
Aristóteles, na Política,  não rejeitou a posição de Platão, mas alterou-a. O bom governo consistia numa mistura de elementos. Uma minoria governava com o consentimento da maioria; mas quem governava deveria ter excelência (arete), o conceito idealizado de aristocracia. Muitos outros, porém, poderiam habilitar-se à cidadania por meio de alguma educação. Considerava, no entanto, que a democracia como doutrina ou como um ideal sem excelência era uma falácia.
Depois dos gregos, a palavra democracia é usada pela república romana, por Maquiavel nos seus Discursos, nos republicanos ingleses e holandeses do século XVII e no inicio da república americana. Sem excepção, alinharam todos com a teoria mista de Aristóteles, sobre um bom governo. Contudo, não deixaram de salientar o apoio popular como força motriz de um Estado. Argumentavam que as boas leis para protecção de todos não eram suficientemente boas se os sujeitos se não tornassem cidadãos activos (como defendido pelos gregos no sentido da liberdade) e não fizessem as suas leis colectivamente. Se o argumento moral os aproximava do paganismo romano e do protestantismo tardio, ao defender o homem como fazedor de coisas e não um individuo apenas obediente às leis, já o argumento de prudência se fazia presente ao defenderem que um Estado em que o seu povo confiava era um Estado mais forte.
A estes sucede a Revolução Francesa (que deu origem à mortandade que se conhece) e a obra de Rousseau. Independentemente da sua instrução ou do seu património, todas as pessoas tinham o direito de expressar a sua vontade na coisa pública. O bem comum (ou vontade geral) seria melhor compreendido por pessoas bem intencionadas, simples e altruístas (pessoas normais) a partir da sua própria experiência e consciência, do que por indivíduos instruídos e socialmente artificiais.
Finalmente, a palavra democracia, foi utilizada na constituição americana, em bastantes constituições europeias do século XIX (e nas constituições da Alemanha e do Japão a seguir à Segunda Guerra Mundial), e ainda nas obras de John Stuart  Mill e Alexis de Tocqueville. Nestes casos, todos podem participar caso se interessem, mas devem respeitar os direitos iguais dos cidadãos, segundo uma ordem legal reguladora que define, protege e limita esses mesmos direitos.
Mill, autor de duas das mais importantes obras do mundo moderno (Essay on liberty e Considerations on representative Government), defendia o direito de votar a todos os adultos (incluindo as mulheres), mas só depois da instrução secundária obrigatória ter sido instituída e ter passado tempo suficiente para surtir efeito. Não andava muito longe do conceito de excelência de Platão e Aristóteles.
O bom senso impõe-nos, assim, prudência na utilização da palavra e do conceito de democracia, sob pena de vivermos num mundo de uma “Louca festa de chá” em que as palavras “significam o que eu digo”, como nos é recordado na obra de Lewis Carroll.

Armando Palavras


Post-scriptum

Quando, passados alguns anos, tornamos a uma segunda leitura dos clássicos, algo muda na nossa reinterpretação. Com Tocqueville aconteceu-nos isso. Hoje temos a impressão que, de certa maneira, o escritor francês, não interpretou com toda a correcção o inicio do século XIX americano, pois entendeu a democracia  praticamente como um sinónimo de igualdade. Não abordou, por exemplo, questões como a justiça social (relevantes para o sistema democrático). Já A. Carnegie, em Triumphant Demcracy (um bestseller), utilizou a palavra democracia para celebrar o empreendimento livre e móvel. Uma sociedade de mercado de diferentes riquezas, todavia justificáveis como o resultado do talento originado nas leis de ferro da evolução.
Hoje estamos mais inclinados para  Carnegie, porque no conceito de liberdade está implícito o de igualdade, mas o contrário não é verificável. Além do mais, em muitos casos, socialmente o conceito de igualdade é perverso.
Não conhecemos, contudo, melhor interpretação sobre o ideal democrático, como a lançada no famoso Discurso (Elogio Fúnebre) de Péricles aos seus concidadãos atenienses, tal como foi relatado por Tucidides, na sua História da Guerra do Peleponeso.

Actualizado a 14 de Junho


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