Quando cumpria o seu segundo
mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei
especialmente congeminada contra si.
O texto impedia que o
vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma
ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o visado
promulgou-o, (tal como Sócrates o faria, não o nosso, o Grego) impedindo-se de
auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira.
O desconforto de tamanha
injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco,
se pronunciaram a seu favor.
Como consequência, foram-lhe
disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com
retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem de novo hesitar, o
beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois
tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro.
Num país dobrado à pedincha,
ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes
ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no
videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.
As pessoas de bem logo o
olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em
altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social.
Antes dele só Natália
Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido
de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a
responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação
económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português
entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la,
não. Nunca!»
O silêncio caído sobre o
gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e
primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência
que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem de ser feita
respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da
convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de
outrora, das utopias de outrora”.
Quem o conhece não se
surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade,
foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se
joga, se acrescenta- acrescentando os outros.
“Senti a marginalização e
tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”. O acto
do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral
que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas
Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida
ética.
Com a sua atitude, Eanes
(que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo
para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao
futuro dos que persistem em ser decentes.
Autor: Fernando Dacosta
Nota: Já escrevi algures no
Expresso um comentário sobre Ramalho Eanes, mas sinto-me na obrigação de dizer
algo mais e que me foi contado por mais que uma pessoa.
Disseram-me que perante as
dificuldades da Presidência teve de vender uma casa de férias na Costa de
Caparica e ainda que chegou a mandar virar dois fatos, razão pela qual um
empresário do Norte lhe ofereceu tecido para dois. Quando necessitava de um
conselho convidava as pessoas para depois do jantar, aos quais era servido um
chá por não haver verba para o jantar. O polícia de guarda em vez de estar na
rua de plantão ao frio e chuva mandou colocá-lo no átrio e arranjou uma cadeira
para ele não estar de pé. Consta que também lhe ofereceram Ações da SLN-BPN,
mas recusou.
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