sábado, 7 de abril de 2012

Pedro Castelhano - Carpe diem



Não cites o amor em vão. E julga a noite
sem a chegada do Caos, com os sons originais
a vibrarem na memória. Calhou-te não ser feliz.
Carpe diem.

Os cardos são voláteis, deixa que te toquem como
espuma branca e agreste  quando o vento da tarde
começa a agitar os pinheiros e há brisas que te falam
de silêncios e torturas e infâmias e suspeitas
como se o mundo fosse uma noite mal dormida.
Porque os cardos podem enternecer quando te tocam,
Carpe diem.

Carpe diem
que os deuses hão-de vir a seguir a pedir contas. 
Não rastejes pelas grutas iluminadas da noite. E 
ouve música, como se tivesses livre trânsito
para as catedrais, com flamengos e fulvos sinais
de que a Morte está cada vez mais perto, ceifeira irónica
do teu sonhar de grandes cidades a haver. Porque
no futuro haverá grandes cidades como facas de sangue,
Carpe diem.

Carpe diem
nesta melancolia de dizer adeus mesmo na hora de chegada,
português de gema, fado dos sem destino, rafeiro sentido.
Carpe diem
que o amor é uma porta para o nada e a paixão
a ilusão de qualquer outra ilusão. Os sinos negros
das catedrais são virtuais, as manhãs são cada vez mais
 a mais e as vogais e os sinais e os demais cada vez mais
cada vez mais banais.
Carpe diem
celebra com champagne a madrugada e bebe silêncios
no olhar, que as pedras do lamento não aquecem a alma.


Carpe diem
Porque andas com fome de mulher e de sorrisos
ocupas a noite com a memória.
Fazes o relato íntimo dos gestos
nobilitas crepúsculos como se os tivesse havido
efabulas o desencanto do grau zero à pujança do castanheiro.
Carpe diem
Porque abres os olhos para a coxa alva
e encontras Eros adormecido como podengo alentejano
que desistiu da presa às voltas com o girassol.
Carpe diem
como cidadão desflorado da esperança
podes erguer os dedos sem cortar os pulsos e pedir o arco-íris.
E tu neste desvairo de ventos iludidos
podes perpetuar a ira como a única saída para a noite.
Carpe diem
E que os deuses te assistam no holocausto da memória
com pragas sem tradutor e noites mortas de amor
que o amor deixou o tempo sem resposta
e o que resta é o sem tempo do desamor.


Carpe diem.
Não há nada como ser feliz
com ovos de avestruz no papo.
Dizer que Deus está a morrer
flui a nostalgia dos grandes silêncios
do tempo em que as palavras eram
catedrais e desafiavam o Homem.
Carpe diem
Não há nada melhor do que o crime de viver 
com os bolsos cheios de rosas roubadas
e de chocar ovos de avestruz
em desertos de betão.


Carpe diem
homem que morreste só porque tinhas razão
e o futuro era a tua margem mais próxima.
Olha os desertos que regorjitam de santos
à procura do pecado. De monofisitas,
de idólatras, de iconoclastas. De gente
de sandálias, enquanto o Império cai
e não se determina por certo qual o sexo
dos anjos. Vêm os normandos, vieram
os lombardos, as hordas, as espadas 
e Roma resistiu e o homem sobreviveu.

Carpe diem.
Petrónio foi augusto até na morte
Sócrates feio teve beleza na sicuta
E Alcibíades a jovem esperança
de Atenas sofreu. Chorou na sua armadura.

Carpe diem.
O Apocalipse anuncia-te a cólera 
de sete anjos e os anciãos adormeceram.
Horácio lavra as terras devastadas
pelos bárbaros e Séneca chora por Nero.

Carpe diem
que o futuro está a chegar cheio de jangadas
com sobreviventes da ternura naufragada em bares.
Porque o futuro é o fim do presente, o gesto da mão
trémula a conter o vento que açoita a alma.

Carpe diem
amor feito de fios translúcidos
armadilhados com granadas, espaço
violento e inviolável.


Carpe diem
tu que cultivas serpentes de rastejar lento
e silvo nocturno
tu que reservas o corpo
para a lua cheia de um quarto vazio de luar.

Carpe diem
mesmo quando dilaceras a passagem
da mão para o sussurro do olhar
e os sentidos são como juncos
vibrantes e excluídos no ribeiro da memória
como mendigos sentidos mirando-se
no poço mais fundo da vida e do deserto.

Carpe diem
mesmo que na hora derradeira
não caiba um voo de pássaro
e a águia moribunda nos espere
à porta da última porta da última casa.

Carpe diem
amor, ainda que a tristeza
se esconda no fogo, no calor imo do fogo 
de línguas discretas e amarelas de morte.

Carpe diem
quando não temos terra comum
e o piano é um regato húmido e sonoro
atravessando a noite à procura da madrugada.

Carpe diem.
Sê grande na exultação do tempo
com palavras de âmbar
e margaridas no sorriso. 
Caminha sobre as águas e que as tuas mãos
protejam do silêncio os justos.
E que os justos te reconheçam
quando soar a trombeta
na noite final do terror.

Carpe diem
enquanto vou cortando as veias da alegria
nas últimas horas do dia
e alinho pedras à procura que naveguem.

Carpe diem
na alva e no crepúsculo
com Brel e Callas, cigarras e cucos,
motores e cardos, silvas e arrepios,
Bizâncio, Roma, Acre e eunucos,
e o cheiro da morte e o cheiro do adeus
enquanto o deserto se aproxima cada vez 
mais de mim. E a bicéfala de Alfa do Centauro
me sorri como se soubesse que estou a morrer.

Carpe diem, amor.

  Carpe diem: Tradução livre: Goza a vida; curte

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)


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