3. O Foral de Lagoaça dado por D. Dinis. Contextualização histórica (séc. XIII).
“Foral da Lagoaça dado por D. Dinis
«Dom Denis pela graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve. A
todos quantos esta carta vyrem faço a saber que eu dou a xiiii pobradores
o meu villar que he em terra de Miranda que he chamado
Lagoaça que o pobrem aa tal preyto que façam foro e vezinhança assy
como he conteudo e n’o foro do Mogodoyro e dou-lhys por termho
como parte pela carreyra que vay per o Freyxeo e desy como parte
pelo termho do Freyxeo a proo derectamente como feryr vay em
Doyro e desy como parte per Doyro afesto e vay ferir en’o termho de
Bruçoo e como parte con’o termho de Braçoo e como se vay derectamente
aa cabeça do forno telheyro e daly como se vem dereytamente
aa estante que sta a so a ’Sculca e desy como se vay aa carvalheyra grande
que esta na carreyra da Esculca que se parte da de Bruçoo e de[s]y
como se vay ao Porto de Maçeeinhas que esta em na carreyra que vay
pera Freyxeo; e essa Rybeyra de Maceeinhas nem fazerem prado
coutado nenhuum mays devem a fazer moynhos de [con]suum con’os
de Lagoaça os da Esculca e os da Esculca con’os da Lagoaça pacerem e
montarem e cortarem todos de comsuum salvo seus prados anaes e sas
faceyras. En testemonyo da qual cousa dey a eles esta mha carta.
Dant’em Lixboa xxvi dias d’Abril El Rey o mandou pelo chanceler;
Duram Pirez a fez. Era M.a CCC.a xxiiii» .”
Este documento é de relevante importância para a história medieval de Lagoaça desde logo pelo que nos permite conhecer sobre os primórdios desta povoação, sua localização, número de habitantes e suas obrigações em relação ao povoamento dessas terras, foros e respectivos termos, muito concreta e minuciosamente descritos, aspecto este que é tanto mais interessante quanto se sabe que as relações entre terras vizinhas, nem sempre eram então amistosas, ocorrendo muitas vezes divergências, devido aos limites dos seus termos.
Isto apesar de quanto à sua leitura e rigorosa interpretação histórica, serem bem conhecidas dos historiadores deste período, as dificuldades derivadas quer da inexistência de dicionários de termos foraleiros medievais quer da possibilidade de determinar com exactidão o perímetro geográfico de cada circunscrição, porque, durante o reinado de D. Dinis, teve lugar uma “profunda reforma na administração territorial”
Assim, importa fazer aqui, uma aproximação ao entendimento mais amplo do significado da outorga deste foral a Lagoaça por D.Dinis, rei que prestou especial atenção ao Nordeste Transmontano, concedendo inúmeros aforamentos e forais aos lugares dos actuais concelhos do distrito de Bragança.
Integra-se a concessão de cartas de foro ou forais nas várias políticas deste monarca para promover o povoamento e o incremento da agricultura, como vimos concretamente no foral de Lagoaça, e a centralização e fortalecimento do poder régio, a par da restrição do poder dos eclesiásticos e dos nobres, tentando desse modo resolver ainda a crise cerealífera que, então, afectava o reino. Traduzidas em acções concretas documentadas nas fontes e na vasta historiografia produzida, essas políticas que também visavam a valorização do trabalho dos camponeses, do seu papel político e dos seus líderes, os cavaleiros vilões, assentaram no estabelecimento de novos Concelhos, através da promulgação de diversas Cartas de Foro, especialmente na fronteiriça região transmontana, passagem fácil para o sempre ameaçador inimigo castelhano do reino.
.No norte de Portugal, especialmente em Trás-os-Montes e no Concelho de Bragança, à época, o clero das dioceses e mosteiros e a nobreza eram os grandes senhores donos de vastas e numerosas terras, situação que D. Dinis tentou alterar com a reforma e reorganização político-jurídica e administrativo-financeira do reino, com a criação de novos cargos e instituições, a aplicação do direito e da justiça da Coroa, a cobrança do fisco e outras medidas generalizadas a todo o reino.
Com esse intuito, D. Dinis usou a concessão de Forais que permitia que os habitantes das aldeias, para além de possuírem um casal, isto é, uma pequena propriedade rural, de onde podiam tirar o próprio sustento, como vimos no Foral de Lagoaça acima transcrito, passassem a gozar de mais liberdade política e fiscal em relação ao clero e à nobreza, ainda que tivessem de pagar muitos impostos à Coroa, e em muitos casos, de prestarem serviço militar ao soberano. Desse modo a concessão de forais contribuia para fortalecer o poder monárquico e ampliar as receitas financeiras, tanto para os Concelhos, como para o próprio erário régio, recursos que foram aplicados em proveito das próprias comunidades locais, e de outras políticas de D. Dinis, como por exemplo, a construção de navios mercantes e de navios de guerra, em parceria com a alta burguesia citadina, a secagem de pântanos, a plantação de pinhais e árvores destinadas à construção dos navios.
Através do mesmo expediente e com os mesmos propósitos, D.Dinis concedeu a povoadores propriedades reguengas, novas ou antigas, que estavam desocupadas, e diminuiu o poder político de concelhos mais antigos e ricos, como por ex. Mogadouro, Miranda, Mirandela e Bragança, criando novos Concelhos, com terras que desmembrou dos atrás referidos.
Com a concessão de Cartas de Foral, D. Dinis, passou a apoiar-se sistematicamente nos camponeses, a maior parte da população portuguesa de então, e nos cavaleiros-vilões, residentes no campo e nas aldeias, a quem concedeu direitos de que não gozavam, para obter deles, em troca, uma fidelidade concreta e efectiva, que o ajudasse a enfraquecer ainda mais o poder clerical e nobiliárquico. Por outro lado, as constantes proibições expressas nos forais, quanto a impedir que os ricos-homens permanecessem mais de um dia em terras dos Concelhos visava evitar que eles honrassem novas terras, cujos habitantes, passavam a vincular-se aos mesmos, através de laços de compromisso feudo-vassálicos.
Nota-se em alguns desses Forais, uma preocupação do Rei para explicitar objectivamente o foro, como se viu acima no foral de Lagoaça e outros impostos que os vezinhos do Concelho tinham de pagar, como é exemplo bem ilustrativo neste caso, o foral que D.Dinis concedeu no ano seguinte ao de Lagoaça ao concelho de Vilarinho da Castanheira . Também através da concessão dos Forais, se tentavam conter as vinganças pessoais, os abusos e violências praticados contra as mulheres e os órfãos, donde resultava uma nova situação de liberdade e de respeito pelo soberano direito do Rei que era representado no âmbito dos Concelhos, pelo seu próprio selo, pelo seu Pelourinho e pela sua bandeira ou brasão, símbolos de autonomia das terras em relação aos senhores poderosos e da afirmação do novo poder dos concelhos.
4. Contextualização espacio-temporal
“Regresso ao Lar
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...
Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar! “
Pela voz poética de Guerra Junqueiro, abrimos para este segundo excurso de natureza bem diferente do anterior mas igualmente importante a uma melhor contextualização espacial e ordenamento administrativo de Lagoaça que tem a ver com a sucinta caracterização do concelho de Freixo- de- Espada- à Cinta, terra natal do grande poeta português oitocentista, acima evocado.
Freixo de Espada à Cinta, vila de existência anterior à fundação do Reino de Portugal, pertencente ao Distrito de Bragança, com cerca de 2 100 habitantes é sede de um município com 244,49 km² de área e 3 931 habitantes (2006), subdividido em 6 freguesias.
O município é limitado a norte pelo município de Mogadouro, a leste e sul pela Espanha, a sudoeste por Figueira de Castelo Rodrigo e Vila Nova de Foz Côa e a oeste e noroeste por Torre de Moncorvo. Tem por Orago S. Miguel Arcanjo, adoptando os seus habitantes como Padroeira, Nossa Senhora dos Montes Ermos, a quem são dedicadas as festas e romaria, na segunda semana do mês de Agosto.
A cerca de 4 Km da Vila passa o rio Douro, demarcando neste concelho a fronteira entre Portugal e Espanha, e segundo Sant'Anna Dionísio “foi durante oito séculos um dos escudos mais seguros (e politicamente menos dispendiosos) que Portugal possuiu na sua longa linha de contacto com a nação vizinha...”
O concelho de Freixo, em que se integra Lagoaça, há mais de 100 anos, é uma terra que se desenvolve desde o inicio da nacionalidade, tendo-lhe sido outorgado foral, entre 1155/57, por D. Afonso Henriques.
A história política e administrativa deste concelho é longa e rica, desde a guerra que D. Afonso II sustentou com suas irmãs protegidas de Afonso IX de Leão, a qual teve como consequência o saue e tomada desta terra, em 1211, pelas forças leonesas. Mais tarde, em 1236 no reinado de D. Sancho II, veio pôr-lhe cerco o Infante D. Afonso, filho de Fernando III de Castela. Desta vez os habitantes de Freixo conseguiram romper o cerco, obrigando os castelhanos a bater em retirada. Como recompensa, o monarca português concedeu-lhe a categoria de Vila em 1240. Pouco depois, a 27 de Março de 1248 D. Afonso III confirmou o foral outorgado por D.Afonso Henriques e todos os privilégios da vila. O concelho de Freixo entendendo que a realização de uma feira ajudaria a um maior povoamento e a poder ter mais homens para a sua defesa, pediu a D. Dinis que lhe outorgasse carta de feira, o que foi concedido a 9 de Março de 1307, sendo autorizada a sua realização “oito dias andados de cada mês” com a duração de um dia.
Continuando o seu desenvolvimento como burgo, os habitantes desta Vila que tinham voto em Cortes, em 1342, pedem a D. Afonso IV que lhes seja concedido o uso da Terça da Igreja a fim de concluírem as muralhas da vila, ao que o rei respondeu afirmativamente. Ainda com estes meios se começou a construir a actual Igreja Matriz, cuja edificação só ficou concluída em pleno reinado de D. João IV. D. Afonso V manteve a Terça no concelho, mas doou todos os outros direitos reais a Vasco Fernandes Sampaio, primeiro donatário desta vila, permanecendo Freixo, a quem D. Manuel outorga foral novo em 1 de Outubro de 1512, em poder desta importante família durante séculos, até que a lei de 19 de Julho de 1790 acabou com as donatarias.
No inicio do século XVI era uma poderosa praça de guerra cercada de muros e com três torres mestras, das quais actualmente só resta uma, facetada e heptagonal exemplar único na Península Ibérica: a denominada Torre do Galo ou do Relógio.
Esta vila ainda viria a sofrer durante muito tempo a “Guerra de Fronteira”, nomeadamente entre 1580 e 1644, de que são exemplo, as pilhagens e destruição de Lagoaça e Fornos em 1644. Já em 1896 o concelho de Freixo de Espada à Cinta é extinto e anexado a Torre de Moncorvo, mas a sua população resiste e consegue a 13 de Janeiro de 1898 restaurar o foro municipal.
CONCLUSÃO
As profundas raízes históricas de Lagoaça e do concelho a que hoje pertence estão materializadas num vasto património artístico e cultural de onde podemos destacar a referida Torre, a Igreja Matriz, a Igreja da Misericórdia, o Pelourinho, a Igreja do Convento e um elevado número de casas com os portais e janelas decoradas com motivos de arte manuelina: meias esferas, folhagens, conchas, troncos entrelaçados, etc.
Para além da riqueza histórica e patrimonial, é porém a sua magnífica envolvência natural e paisagística que começa por encantar: desde o poético e lendário espectáculo das amendoeiras em flor, à beleza paradisíaca dos seus prados, vinhas, olivais e laranjais e do colorido aromático da “ açucena campesina” ou “açucena dos campos”, raridade botânica.
Toda esta atracção panorâmica é visível do imponente rochedo do Penedo Durão (727 metros), numa cenografia de espectáculo natural nas estratificações do Candedo onde está a Calçada de Alpajares de provável origem medieval. Paisagens deslumbrantes desfrutam-se também das arribas do Douro em Lagoaça, fazendo destas terras, um espaço singular de vida e de cultura que se respira e expande à medida que cresce o nosso conhecimento delas.
Maria Otília Pereira Lage
Porto, 5 de Março de 2011
in: Trás-os -Montes e Alto Douro, Mosaico de iência e Cultura (2011)
A Autora
Residente em Rio Tinto - Porto, é natural de Trás-os-Montes, Carrazeda de Ansiães, onde exerce as funções de Deputada da Assembleia Municipal, desde 2009.
Licenciada em História, pela Universidade do Porto (1976), Mestre em História das Populações (1995) e Doutora em História Moderna e Contemporânea de Portugal pela Universidade do Minho (2001), onde foi investigadora e docente, tem um pós doutoramento em novos estudos sociais e históricos, pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2009). É Pós Graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação (1979) pela Universidade de Coimbra e Especializada em Administração Escolar pelo IPP - Instituto Politécnico do Porto (1992).
Docente, bibliotecária e documentalista, foi bibliotecária nos serviços centrais do IPP e docente no Curso de Gestão de Património da ESE- Escola Superior de Educação do Porto, desde 1989. De 1995 a 2009, exerceu os cargos de chefe de divisão e directora de serviços de documentação e publicações no IPP, tendo também sido responsável pela dinamização das bibliotecas de todas as escolas do IPP e pela criação e desenvolvimento das bibliotecas da ESEIG- Escola Superior de Estudos Industriais e de Gestão e ESTG- Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Felgueiras. Foi autora, coordenadora e docente do curso CTDI - Curso de Tecnologias de Documemtação e Informação da ESEIG, membro do Conselho Pedagógico e do Conselho Científico desta Escola, de 2001 a 2003.
Actualmente é docente da Universidade Lusófona do Porto, Coordenadora Científica do Mestrado em Educação e Bibliotecas da mesma Universidade e Investigadora do CITCEM da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Coordenadora de projectos nacionais e europeus, é desde 2001 a Coordenadora do Centro de Língua e Cultura Chinesa e dos Cursos de Mandarim do IPP.
Orientadora e arguente de teses de doutoramento e mestrado em Demografia Histórica, História das Populações e Bibliotecas, é também autora de cursos, livros, artigos, conferências e comunicações a congressos em Estudos Sociais e Históricos e Ciências da Educação, Documentação e Informação.
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