segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Bento da Cruz - VIAGEM AO NORDESTE TRANSMONTANO

Chaves - Ponte Romana
Há pessoas que todos os anos fazem uma viagem a terras estranhas e longínquas e depois, a propósito e sem ele, nunca mais se calam com as coisas exóticas e remotas que viram. Ora eu, que não costumo viajar, começava a sentir-me inferiorizado. Ah, mas deixei de estar. Este ano, também fiz uma viagem! Fui a Freixo de Espada à Cinta…
Despontava o sol de um dia claro como um rio na Primavera, quando eu e mais três companheiros de aventura subimos para um jeep no cais de Chaves e rumámos a Oriente. Perguntei se algum deles se havia confessado, feito seguro ou testamento. Eles riram-se, prova de que não levaram a viagem tão a sério como eu, que, por acaso, também não tinha feito uma coisa nem outra.
O primeiro povoado de vulto em que tocámos foi em Vilarandelo, terra de curiosas tradições históricas e arqueológicas, das quais me abstenho, por falta de tempo e estudo. Mas não posso deixar de me referir a um fenómeno a que assisti na minha infância, o qual, visto à luz dos dias de hoje, nos parece inacreditável. Vem ele a ser o facto de os de Vilarandelo se aventuravam a ir daqui à minha aldeia barrosã, aproximadamente cem quilómetros de caminhos velhos, com pipas de vinho em carros de bois. Lembro-me de uma vez ter aparecido lá por casa um indivíduo com um casco em cima de um carro puxado por dois bois penatos, e dizer que aquilo era “vinho de Santa Bárbara”. E tendo-lhe eu perguntado se “Santa Bárbara” era alguma aldeia, ele me respondeu que não. Que “santa Bárbara” era uma “Romaria”. E que os mordomos, nomeados anualmente, para arranjarem dinheiro para a festa, iam, pelo tempo da encuba, de porta em porta, a pedir “vinho para a Santa”. Que todos contribuíam com uma romeia, um cântaro, um almude e daí para cima, conforme a devoção ou a prosápia. Que era desse vinho que ele ali trazia para vender ou trocar por batatas. Donde se infere que Santa Bárbara, além de padroeira dos mineiros da Borralha, a quem não protegeu como devia, porque deixou ir as minas à falência, foi também a responsável pelos muitos alcoólicos que, por essa altura, décadas de trinta e quarenta do século passado, infestavam Barroso.
A seguir tocámos em Valpaços e eu lembrei-me de uma outra história, esta muito mais recente. Em Agosto passado, estando eu de férias, parou na minha aldeia um vendedor ambulante numa carrinha fechada. Perguntei-lhe de onde era.
-Valpaços.
-Tenho lá um amigo.
-Quem?
-O padre.
-Anda agora de guerra aberta com um paroquiano.
-Porquê?
-Aqui há tempos, um burro que descia a rua atrelado a uma carroça, perdeu o domínio da carga, entrou igreja dentro e destruiu o guarda-vento. Agora o padre exige ao dono do burro a reparação dos estragos. O dono do animal responde que não tem nada que pagar. Que peça o dinheiro ao burro que foi o culpado…
Valpaços - Igreja Matriz

Muitas outras coisas poderia contar a respeito de Valpaços, região de excelentes vinhos de mesa, muito consumidos e apreciados em Barroso, mas, de momento, fico-me pela recordação de ter lido em Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, vol. II, pag. 82, que no dia 16 de Novembro de 1846, durante a guerra da Patuleia e o combate conhecido por “Recontro de Valpaços”, o célebre José do Telhado aqui salvou a vida ao visconde Sá da Bandeira, que lha retribuiu com a condecoração da Torre-e-Espada. Quem diria então que, naquele garboso e destemido sargento de cavalaria ao serviço da Junta do Norte, se estava incubando o maior salteador que Portugal alguma vez já teve.
E eis que nos aparece pela frente Mirandela a rever-se, toda vaidosa, no espelho do Tua. Propus uma visita. Mas o piloto foi de opinião de que aproveitássemos o vento fagueiro da manhã, porque, segundo os instrumentos de bordo, vinha aí muito calor, com o qual se torna difícil navegar à bolina. Concordei. E foi então que os meus olhos, sempre ávidos de novidades, descobriram o rio Sabor, serena beleza de águas tranquilas entre margens de verde e azul, vinhedos e olivais, montanhas de mãos postas, voos de aves rupestres, reflexos de peixes, moiras encantadas à espera que alguém lhes quebre o feitiço e Baco, coroado de pâmpanos, a fazer-nos gaifonas por entre as parras.
Dizem que vão lá construir uma barragem. Como transmontano e amante de paisagens virgens, aqui deixo o meu protesto.
Mirandela

Algum tempo ao longo dele fomos navegando até que, descrevendo um ângulo recto, apontámos a proa a Torre de Moncorvo. Tínhamos ouvido dizer que era aqui que se erguia a maior e mais bonita igreja de Trás-os-Montes. Fomos confirmar. Sobre ser a mais bonita, haverá quem discorde. Quanto a ser a maior, creio que ninguém o porá em dúvida. E como, em matéria de arquitectura religiosa, não passo de um leigo, não digo mais nada sobre o famigerado templo. Ou por outra. Quero dizer aos moncorvenses que um monumento daqueles merecia mais respeito. Aquilo, nas traseiras, mais parece uma cloaca de secos e molhados.
Torre de Moncorvo
Carviçais - Capela do Santo cristo

Cumprida a nossa devoção de bons católicos, que nos prezamos de ser, deambulámos um pouco pelas ruazinhas medievais de saudosas casas brasonadas, entre elas a do “célebre general Claudino”. Esta expressão não é minha. Surripiei-a de Camilo Castelo Branco, “Óbolo às Crianças”, pag. 168, na qual, ao evocar, mais uma vez, Jorge Artur de Oliveira Pimentel, advogado e poeta que, em Janeiro de 1849, afogou nas águas do Douro uma paixão amorosa não correspondida, diz que “era bacharel em direito, filho do célebre general Claudino, e irmão de Júlio de Oliveira Pimentel, visconde de Vila-Maior.” Digo mais uma vez, porque Camilo já havia falado deste seu malogrado amigo de mocidade e de boémia portuense, em Cousas Leves e Pesadas, Duas Horas de Leitura, n’ As Três Irmãs, e n’ A Mulher Fatal. Que eu, para ser franco, do general Claudino conheço apenas esta citação de Camilo. Suponho, mas não garanto, que se notabilizou pela muita porrada que deu, primeiro nos soldados de Napoleão durante as Invasões Francesas, depois nos miguelistas durante as Lutas Liberais. Se assim foi, viva o general Claudino e a terra que o viu nascer e da qual, por hoje, me despeço, com promessa de voltar.
 Detivemo-nos ainda um pouco no largo ou Praça, de ar provinciano, pasmado e medievo, por onde, decerto, passa toda a má língua da terra e subimos as escadas da Câmara para ver o busto de Campos Monteiro, daqui natural, escritor que em vida andou no galarim da fama e dos êxitos literários, e hoje está completamente esquecido – exemplo e aviso a todos aqueles que escrevem e vivem de ilusões…
De novo no jeep, fizemos aguada no Artur de Carviçais, onde, em vez de água, metemos a bordo uma boa quantidade de vinho da região, posta à mirandesa e doce de amêndoa. Que isto de ir à terra das amendoeiras e não lhes saborear o fruto, seria imperdoável.
Já no rumo de Freixo de Espada à Cinta surgiu entre nós a questão de saber se os painéis da Matriz são do Grão Vasco ou não.
-À vista da obra pronuncio-me – disse eu. Os companheiros riram-se, como quem diz: mas quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?
Afinal os painéis não estavam lá. Foram retirados para obras na capela-mor.
Painéis à parte, o templo ainda tem muito que ver. Mas eu nunca me senti bem dentro de igrejas vazias. Prefiro vê-las por fora. E, vista do exterior, a Matriz de Freixo de Espada à Cinta, estilo manuelino, tem incontestável dignidade.
Freixo de Espada à Cinta - Torre
 Heptagonal

Dali fomos visitar a Torre Heptagonal, localmente conhecida por Torre do Galo, elegante silhueta de pedra madura perspectivada em horizontes bíblicos de vinhas e oliveiras, ali pasmados no tempo desde que D. Frei Bartolomeu dos Mártires os viu e abençoou no longínquo dia 23 de Fevereiro de 1564 quando regressava do Concílio de Trento, conforme nos conta Frei Luís de Sousa na “Vida do Arcebispo”, tomo II, pag. 6.
Segundo o “Livro das Fortalezas” de Duarte d’Armas, datado de 1509, o castelo tinha mais torres, muralhas, barbacãs e tudo o mais que as fortalezas antigas costumavam ter. Tudo desapareceu sob o camartelo da ignorância. Salvou-se esta porque precisaram dela para instalarem um campanário. Para alguma coisa hão-de servir os sinos…
De regresso, topámos com a estátua de um tal Jorge Álvares, do qual rezam as crónicas que andou pelo Oriente às ordens de Afonso de Albuquerque e que foi o primeiro europeu a chegar em barco próprio à China, sobre a qual deixou um interessante relato. Nunca tinha ouvido falar no homem. Já o mesmo não direi de outros filhos ilustres da terra, entre eles o Almirante Sarmento Rodrigues e o poeta Guerra Junqueiro, a propósito do qual me lembrei de novo de Camilo Castelo Branco. Vejamos o que ele diz nas “Novelas do Minho”, 4.ª edição, Parceria António Maria Pereira, vol. 3.º, conto “O degredado”, pag 11: “Tem Portugal uns povoados sertanejos que os políticos e os literatos exploram, metendo a riso as coisas e as pessoas de lá. Aqui há uns trinta anos, os folhetinistas deitaram a garra a Figueiró dos Vinhos e a Freixo de Espada à Cinta. Mal diriam eles que deste velho burgo acastelado havia de sair o fulminador de Jeová e do diabo, o sr. Guerra Junqueiro, o mais bizarro pintor de uma sociedade morfética, e o mais canoro secretário geral que ainda ouviram ministros do reino e governadores civis! (…) Ali, em Freixo de Espada à Cinta, nasceu também o primeiro jesuíta português, o padre Gonçalo de Medeiros. Dois filhos que não parecem da mesma mãe. Compensações. O mal que fez o jesuíta anda o poeta a remediá-lo.”
Eu não podia passar por Freixo de Espada à Cinta sem me lembrar de Guerra Junqueiro. Perguntei por ele. Encaminharam-nos para o museu. Mas fomos ao engano. Afinal o museu não é do poeta, mas do pai Junqueiro, lavrador e comerciante. Nada de especial, a não ser algumas ingenuidades da senhora que nos serviu de cicerone e me fizeram sorrir.
Passámos ainda pelo museu etnográfico ao cheiro do ciclo da seda, indústria outrora aqui florescente e hoje relegada para o rol das lembranças museológicas, e subimos ao largo do município a ver o pelourinho manuelino, muito bem conservado. E foi então que descobri, do outro lado do largo, um busto de Guerra Junqueiro. Corri, em espírito, entenda-se, a ajoelhar diante dele e a agradecer-lhe, de mãos postas, o prazer, o entusiasmo, a revelação que foram para mim, na minha juventude, os sonoros e inspirados versos do autor de A Musa em Férias que, por essa altura, abundavam nas selectas de estudo e nos compêndios da história da literatura. Decorei aquilo tudo: O Melro, A Moleirinha, Morena, Fiel, A Lágrima, Bênção da Locomotiva, Portugal, Recordam-se Vocês do Bom Tempo d’Outrora, Pobres de Pobres são Pobrezinhos e tantos, tantos outros. Hoje recordo-me apenas de O Regresso ao Lar, por ser o mais adequado à minha idade e estado de espírito:
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias de astros, gemas de luar…
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho…
Canta-me cantigas de fazer chorar!...
Prestada esta homenagem ao, para mim, sempre grande e incomparável Guerra Junqueiro, pedi ao piloto que navegasse a estibordo, rumo a Mogadouro. Queria agradecer a Trindade Coelho, para mim, e em termos transmontanos, o correspondente em prosa ao génio poético de Junqueiro, as lágrimas de pura emoção estética que eu chorei quando li, pela primeira vez, Idílio Rústico, com o pequeno Gonçalo a descer a rua deserta, alta madrugada, ainda com estrelas no céu e tudo a dormir, à frente do rebanho, ou com as tropelias do pequeno jumento Sultão o qual, quando lhe dava na veneta, punha toda a rua numa polvorosa de galinhas pelo ar e rapazes pelo chão, ante os olhos embevecidos e orgulhosos do dono, o senhor Tomé. Desculpem tanta citação, mas, quando a brotoeja da literatura se nos pega, nunca mais nos larga.
Mogadouro -
castelo
Macedo de Cavaleiros -
Fonte dos Cavaleiros

Estava eu, na atitude de quem reza, e de olhos na estátua de Trindade Coelho no jardim público de Mogadouro, estalou um foguete no céu tranquilo. Voltei-me. Era a procissão que saia. Filas de escuteiros e de anjinhos, duas bandas de música, um andor e uma caterva de penitentes de ambos os sexos e todas as idades, descalços, a pisar mansinho, ignoro se pelas irregularidades do piso, se por falta de hábito. Perguntei que festa era aquela.

-Nossa Senhora do Caminho – responderam-me.
-Pois que ela nos guie.
E foi o regresso, por Macedo de Cavaleiros. Aportámos a Chaves ao escurecer, cansados, mas felizes.
Doravante, quando aqueles que viajam todos os anos me vierem falar da China e do Japão, eu falar-lhes-ei de Torre de Moncorvo e de Freixo de Espada à Cinta.

Bento da Cruz

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)



                                               O Autor

BENTO DA CRUZFilho e neto de lavradores, Bento da Cruz nasceu a 22 de Fevereiro de 1925 na aldeia de Peireses, concelho de Montalegre.
Até 1940 trabalhou na lavoura. Nesse ano ingressou na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges beneditinos.
Em 1946, após o noviciado, abandonou, de moto próprio, a vida religiosa.
Em 1948 matriculou-se na Faculdade de Medicina de Coimbra.
De 1956 a 1970 trabalhou em Barroso, acumulando a clínica geral com a estomatologia.
Em 1971 fixou-se no Porto.
Foi deputado à Assembleia da República, distinguido com a medalha de honra (oiro) da Câmara Municipal de Montalegre e é o patrono da Escola Secundária da mesma vila.
Logo após o 25 de Abril, fundou o quinzenário regionalista CORREIO DO PLANALTO, que ainda hoje dirige.
Para além de colaboração dispersa por revistas e jornais, publicou em volume:
PLANALTO EM CHAMAS – romance, colecção Autores Portugueses, da Arcádia, Lisboa, 1963.
AO LONGO DA FRONTEIRA – romance, colecção Autores Portugueses, da Arcádia, Lisboa, 1964.
FILHAS DE LOTH – romance – Edição da Gutenberg – Chaves, 1967; 2ª edição, Editorial Labirinto, 1988; 3ª edição, na colecção “Obras de Bento da Cruz” da Editorial de Notícias, 1993; 4ª edição, Círculo de Leitores, 1993.
CONTOS DE GOSTOFRIO – Livraria Paisagem Editora, Porto, 1973. Prémio “Fialho de Almeida” da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos. 2ª edição na colecção “Obras de Bento da Cruz” da Editorial de Notícias, 1993.
HISTÓRIAS DA VERMELHINHA – contos da tradição oral de Barroso, Editorial Domingos Barreira, Lisboa, 1991; 2.ªedição, Editorial Notícias, 2000.
PLANALTO DE GOSTOFRIO – romance, Círculo de Leitores, 1982; 2ª edição na colecção “Obras de Bento da Cruz” da Editorial de Notícias, 1992.
O LOBO GUERRILHEIRO – romance. Prémio literário “Diário de Notícias” referente ao ano de 1991 e Prémio de Literatura (Ficção) da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos. Publicado na supracitada colecção “Obras de Bento da Cruz” da Editorial Notícias. Tradução galega: Edicións Xerais de Galícia, 1996. 2ª edição. Planeta de Agostini, 2001, na colecção “Os Grandes Escritores Portugueses Actuais”, dirigida por Urbano Tavares Rodrigues.
VICTOR BRANCO – Escritor Barrosão – Vida e Obra, Prémio Literário de Investigação da Câmara Municipal de Montalegre. Editorial Notícias, 1995.
O RETÁBULO DAS VIRGENS LOUCAS – romance – Prémio Literário (Ficção) da Câmara Municipal de Montalegre, Editorial Notícias, 1996
HISTÓRIAS DE LANA-CAPRINA – contos, Editorial Notícias, 1998; 2ª edição em 1999.
A LOBA – romance. “Prémio Eixo Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa” de 1999 e “Prémio Arzobispo Juan de San Clemente” na modalidade “A melhor novela em galego do ano 2000”. 1ª edição, Editorial Notícias,2000. 2ª edição, Edicions Xerais de Galícia, 2000; 3ª, idem, 2001.
GUERRILHEIROS ANTIFRANQUISTAS EM TRÁS-OS-MONTES – história – 1ª edição: Câmara Municipal de Montalegre, 2003, 2ªedição: Âncora Editora, Lisboa, 2005.
EIXO ATLÂNTICO -  um mundo a descobrir. Co-autoria. Texto em português, espanhol e inglês. Nova Gallícia Edicións, S.L. 2004
A LENDA DE HIRÃN E BELKISS – novela, Âncora Editora, 2005
PROLEGÓMENOS (Crónicas de Barroso), Âncora Editora, 2007; 2.ª edição, Âncora Editora, 2008.
PROLEGÓMENOS II, Âncora Editora, 2009.
O BOI DO POVO e Outros Textos – colecção Memória Perecível da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 2009.
A FÁRRIA – romance – Âncora Editora, 2009


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