Está sentado debaixo do alpendre. O Sol rompe a folhagem e salpica-lhe o corpo de luz. O chapéu e os óculos balizam-lhe o rosto. A mão esquerda sustém o livro que a mão direita sublinha a azul. A luz intensifica o brilho dos olhos e a prega do riso. Está como um espantalho mas não enxota os pássaros. Cantam e debicam os bagos gordos e tintos.
Este rosto foi – há quanto tempo?- o do adolescente retratado na Fotografia Albano. Os olhos grandes, tristes, a risca torta do cabelo, a pele macia, a boca fechada, o primeiro fato, a gravata preta para abandonar o mundo. Uma tristeza funda sem lágrimas, a curva suave do rosto a marcar o pescoço magro. O cabelo brilha.
Vem duma terra de granito e xisto, encravada entre a Serra do Fiolhoso e o Alto de São Domingos. Lá em baixo corre o rio onde bebem os salgueiros e os freixos e pontuado pelas fragas: fraga da Andorinha, Fraga da Alicada, Fraga do Ferro. Nadavam nus. Com o sumo das amoras escreviam palavras na calçada romana: o Alfredo namora a Clara.
Van Gogh- O homem do Chapéu de Palha, Paris |
Às vezes chovia uma semana inteira, mas o pior era o nevoeiro. A humidade penetrava até ao mais fundo dos ossos. Durante dias ali ficava aquele manto húmido que cobria os humanos e os bichos da cabeça aos pés. Mas quando o Sol rompia era outra a luz. As oliveiras e a vinha espraiavam-se da varanda até se perderem na mancha verde e de veludo das serras que cortavam o horizonte.
-Lembras-te da varanda, Laura? Com telhado e espaldar de madeira. Quando lhe renovaram o soalho, apanhamos alguns luíses de cobre que serviram no jogo da malha. No canto da varanda ficava o banco queimado onde se assentava Eva, a bisavó.
-Laura, já pensaste no que seria a casa sem varanda? As andorinhas aos pares, como no poema de Guerra Junqueiro, pousavam nos beirais e voavam sobre as nossas cabeças.
Laura aproximou-se.
-Que se passa contigo?
O Homem do Chapéu Amarelo pousou o livro e olhou-a nos olhos. As mãos tocaram o corpo de Laura. Abraçou-a pelos ombros. Acariciou-lhe os cabelos devagar e a nuca. Ela soltou um riso salpicado pela luz das lágrimas.
-Vencemos!
-Vencemos o quê?
Ele passou-lhe as mãos pelas rugas do rosto. Uma a uma. Eram como as camadas das árvores centenárias. O vermelho tingiu-a ao de leve.
-Estás maluco. Olha o que te deu.
-Vencemos.
Desde o primeiro dia. Ficara preso àqueles olhos amendoados, marcados por um travo de melancolia. O café com os seus espelhos e os fregueses inclinados sobre as chávenas já não existe. Nem os pequenos grupos desconfiados do homem que lia o jornal.
Nesse dia, o Homem do Chapéu Amarelo falou pelos cotovelos. Queria prendê-la e ao mesmo tempo saltar fora. “O mesmo amor que tenham por nós / quer-nos oprime-nos.”
-Vencemos o quê?
Tantas vezes estiveram à beira da rotura. Tantas vezes disseram que tinham de seguir o próprio caminho. E afinal as curvas do corpo de um confundem-se com as do corpo do outro. Encaixam como duas metades debaixo do lençol. Não cabe uma folha de papel.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
O Autor
ANTÓNIO BORGES COELHO - "Nasceu em Murça em 1928. Esteve cinco anos no seminário e seis anos e meio nas prisões da Pide. Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorado em História. Leccionou no Departamento de História daquela Faculdade entre 1974 e 1998, data da sua jubilação. Escreveu ensaios, poesia, teatro, ficção e história. É autor, entre outros textos, de "Tempo de Lacraus" (ficção), "Portugal na Espanha Árabe", "Inquisição de Évora", "Donde Viemos- História de Portugal I" e "Portugal Medievo. História de Portugal II).
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