sábado, 24 de dezembro de 2011

Saudades

                                               Quarta, 21 Dezembro 2011 02:16
Virgilio Gomes

Encontrei há uns anos, numa universidade de Roma, um texto extraordinário queassociava o conceito de saudade da terra natal dos portugueses ao bacalhau. Li com entusiasmo todo o texto e logo, naquele momento, refleti sobre as lembranças alimentares que me fariam ter saudades da minha terra transmontana. O termo saudade é tão difícil de definir que apenas os poetas são capazes de o fazer. Não vou por isso entrar pelo caminho difícil de começar a definir saudade.
As saudades, como emoções que são, relacionadas com a comida estão mais associadas às pessoas com quem se partilhou a refeição, ou petisco, ou ao momento especial, do que propriamente à comida. Claro que a iguaria estaria sempre acima do que chamaríamos uma prestação correta. As refeições aconteciam em ambiente convivial e quase tertuliano durante as quais o ritual, o respeito, e a sequência verbal eram marcantes. E muitas vezes durante as refeições se moldavam caminhos e se fazia aprendizado de vida. Qual é a emoção que a comida pode provocar quando a recebemos à porta de casa, depois de uma encomenda telefónica, e igual em qualquer parte do mundo?
A mesa era local de educação, atualização de informações e de muita aprendizagem até sobre o que comíamos. Mas a mesma comida provocava, naturalmente, efeitos diferentes. Não esqueço os resmungos de meus irmãos quando eu chegava e pedia um bacalhau guisado com batatas. E porque tinha eu saudades daquele prato? Esta receita sabia-me a liberdade. Era o relembrar de infância das minhas férias mais divertidas e diferentes passadas na aldeia de Montesinho. Onde tinha a permissão de comer no campo com os segadores, recusando o possível bom bife de casa, com aquela comida simples e noutro espaço. Ora foi esse espaço e essas circunstâncias que me marcaram. Não foi, pois, o guisado mas o ambiente e as pessoas com quem eu comia. Eu continuo a gostar muito de bacalhau! O mesmo bacalhau que na pluma de José Lins do Rego parece entediar os trabalhadores da fazenda Santarém onde “ninguém come – dizia uma -, é bacalhau no almoço e no jantar.”
O exemplo de saudade relacionada com a comida também se encontra em aventuras de crianças. Nenhumas “súplicas” tinham o sabor das da dona Catarina dos Batoques. Porquê? Pelo passeio autorizado de ir a sua casa comprá-las, em grupo com irmãos e primos. Mas aquelas “súplicas” marcaram o gosto de tal forma que todas as outras são definidas em comparação com estas. Mas quando, e porque sentimos saudades? Quando precisamos de um aconchego, de mais conforto. E esse aconchego, com coisas que sabemos nos tranquilizam, sabe melhor. Mas quando sentimos a saudade, e tentamos o aconchego com comida, não chega comermos sós. E sem nos darmos conta disso, habituados que estávamos a comer em partilha, quer dizer em ato convivial, se comemos sós, por muito gostosa que esteja a iguaria, acabamos por sentir a falta de um carinho, de um abraço. A comida apenas nos diminui o sofrimento, e a saudade mantém-se. Fica-se com a saudade desconsolada.
Mas há confeções culinárias que não se esquecem e vou permitir-me citar apenas algumas daquelas, que mesmo ingeridas pelos quatro cantos do mundo, me remetem sempre para as minhas “transmontanices”. Dos simples ovos estrelados com açúcar a fazer de sobremesa, ao guisado de ossos, ao butelo com cascas, à carne guisada com macarrão, passando pelo congro de várias formas, e às minhas sempre citadas repolgas (pleurotos, o nome comercial). Este é o produto que mais se mantém no meu imaginário. Porque aprendi a vê-las crescer com a dedicação do meu Avô Nogueiro, às suas explicações, e ao obrigatório jantar de arroz de repolgas com leitãozinho assado, que tinha o privilégio de comer em refeição a sós com o meu Avô, sempre que regressava de férias. A saudade mais constante é a do pão. Pão de mistura e da saudosa “bola de chicha gorda”. E do presunto cortado em pedaços, com canivete, nas adegas para provar o vinho novo. Só fica na memória aquele gosto, pelo local e pelas pessoas. Não terá a mesma memória, o mesmo presunto, apresentado em travessa acética em prazer individual.
Como costumo dizer frequentemente, tive a sorte de ser educado na província. E educado com mitos e rituais alimentares. De bons produtos e boas confeções. Com as couves a saberem a couves. Recentemente o famoso autor americano Michael Pollan escreveu contra a globalização alimentar baseada em produtos alimentares em vez de alimentos, e cito: “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”. E não tenho vergonha de sentir saudades do que gosto de comer. Vou pouco a Trás-os-Montes mas tenho a sorte de virem muitos transmontanices até mim.

 © Virgílio Nogueiro Gomes

Texto incluído no livro “Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura”, editado por Comissão de Festas de Nossa Senhora das Graças 2011 de Lagoaça, e Exoterra L.da, com coordenação de Armando Palavras. Trata-se de uma coletânea de autores transmontanos.
Nem de propósito. A foto que ilustra esta crónica de saudades, foi produzida num jantar em Fortaleza, Brasil, durante o qual foi servido Bolo-Rei e o meu amigo Jorge Chaskelman pediu para eu falar um pouco da tradição deste bolo. Lá veio a conversa da perca de tradições, a saudade da “fava” e do “brinde”. Pois o Bolo-Rei que nos foi servido trazia “fava” e “brinde” que saiu a mim. Parecia de propósito. Desembrulhada foi identificada como a Pomba do Espírito Santo que rapidamente se transformou na Pomba da Paz!
Actualizado em Quarta, 21 Dezembro 2011 02:29

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