No passado dia 15 foi realizado mais um evento cultural de promoção da colectânea em Braga. Dizem-nos vozes de longe, fustigadas pelo vento de norte, que foi de arromba. Como o texto que se segue.
José Machado (Vice presidente da Casa de Trás-os-Montes de Braga) |
Trás-os-Montes e Alto Douro, mosaico de ciência e cultura, que vos direi, com este alvará de soltura que esta função na Casa me tem dado, para vos entusiasmar a ter este livro, a ter e a ler, ou mesmo que seja a ter só para ver, sendo que o ideal será o de o terdes, o de o verdes, o de o lerdes e o de o entenderdes para depois o esquecerdes e o perderdes ou o oferecerdes.
Se olhardes a quem o promoveu e dele cuidou que se fizesse a tempo e horas, António Neto e Armando Palavras, vereis que constitui uma novidade estratégica de uma comissão de festas a Nossa Senhora das Graças, porventura pensado para as pedir, mas se calhar já sendo o resultado delas, que outros anteriores as terão pedido: pois é de graças que o livro se faz, graças, gracinhas e graçolas, correndo o espectro de sentido que as palavras têm. Aqui vereis os frutos de muito trabalho reflexivo e imaginativo, e serão as graças, aqui vereis muitas histórias e fantasias e serão as gracinhas, e aqui vereis muita crítica, pilhéria e mordacidade, e serão as graçolas. Nossa Senhora compensou bem esta gente que lhas pediu ou que a elas se fez, por achar que as merecia de há muito e que as saberá honrar para sempre. O livro é uma fartura de alimento, uma cabazada de encantos e uma ambuça de inquietações. Foi caso de muita e boa curjidade. Parabéns aos seus autores e que a sua graça se tome por variação dessa iniciativa que é fazer a festa à padroeira, honrando a terra através das dádivas mais baratas de seus filhos e amigos, as ideias.
Ora vede o índice de autores, correi os currículos disponíveis e constatai que tendes aí todas as vozes do reino e arredores. Como um jogo de espelhos, cada texto reflecte-se a si e procura reflectir os outros, como túnel de ecos – essa irónica iniciativa de mostrar os sons da lusofonia em túnel que já serviu de mote em exposição mundial- aqui estão as falas, os retratos, os projectos, as chamadas, os apelos, as críticas, os concelhos, as histórias, os poemas, as precesde toda a gente, sobre nós, sobre a nossa terra, sobre Trás-os-Montes. Cem páginas, das 350 dedicadas a sermão, são reservadas a Lagoaça, com esta dinâmica empresariada: quem conhecer Lagoaça, conhece meio mundo e perceberá o restante: do mito ao foral, do hino às histórias, das pessoas às instituições, da arte à religião, da saudade à realidade, das palavras às coisas: aí tem o leitor como é que uma terra pode ser centro de tudo: da singularidade patrimonial, à singularidade de pessoas e famílias, da documentação histórica à mudança inevitável; da gratidão absoluta e do encantamento cego e apaixonado, até ao apelo lúcido para o investimento e a renovação.
Nas outras 250 páginas pode o leitor ficar ciente de que em as lendo só ganhará com que se preocupar: muito mais agora depois de saber em que estado quer o Estado que o país se ponha ajeito para cura de males. Do cru ao cozido – eis uma síntese da revista de artigos: uns para dizer o que tem de acontecer à região e ao país para se reconfígurar na Europa e no mundo, outros para prevenir estratégias de defesa em caso de guerra ou ataque terrorista em campo aberto, este e aquele para fazerem a pedagogia da ambição, da unidade, da congregação e esforços, mais outro e outra para denunciarem usuras e esbanjamentos, outros para extraírem valor absoluto das limitações e dos constrangimentos, não faltando quem descreva e apele à transmontaneidade como dimensão épica, ou quem lhe aponte o caminho da globalização, ou quem lhe elogie a coragem em tempos de repressão e carência, argumentando e evidenciando com tradições, arquivos históricos, documentos e arte, gravuras, festas, rituais, costumes, músicas e gastronomia. Os literatos expandem sempre o imaginário partindo da história de caso, recolhendo as impressões de viagem, documentando a transformação dos lugares, eternizando a paisagem, reinterpretando pedras, rios, campos, hortas, arvoredo e mato, espíritos e trasgos. Os poetas cantam as horas de mansidão e as de sofrimento, uns fixam as da morte, outros as da ressurreição: pedras e lugares, crimes e castigos, pessoas e bestas, rio e vinha, festa e calvário, tudo se junta em palavras.
No miolo, o intervalo para a nossa outra língua, o mirandês testemunhar uma surpreendente vitalidade narrativa e poética. Neste livro assume particular destaque o rio doiro - esta capicua de sentido – e todo ele se constitui como a grande metáfora de nós e da região, seja encarado como cenário, seja tomado como recurso vital. Nas suas águas estão as lendas e as contendas, estão os ócios e os negócios, estão os usos e os abusos, para usar aqui as rimas mais fáceis que um discurso sintético pode embraiar.
Mas estão neste livro dois textos singulares que o leitor deve tomar como fel e ácido para corroer os demais, quer por excederem em certezas quer por minguarem em prova delas: um é sobre o mercado de trabalho, perspectiva carregada com toda a adrenalina imperativa da modernização contemporânea, reconfigurando toda a dinâmica de trabalho e ocupação com que devemos perspectivar o futuro; outro é sobre arte e tem a lucidez acutilante dos 92 anos de Nadir Afonso: ora fique então o leitor com este desafio de considerar que a perfeição e a originalidade são propriedades efémeras, inconstantes e sempre mutáveis.
O livro é atravessado por um desejo de absoluto, por uma ânsia de museu e de patrimonialização universal, o caminho mais sossegado para os nostálgicos de hoje, mas o mais armadilhado para as gerações de amanhã. Mas, como em tudo, pode o leitor introduzir o tempêro e fazer as suas diferenças de gosto e de ritmo e caso não goste nem aprecie, já sabe, como se diz por lá: faça melhor.
José Machado / Braga, 15 de Outubro de 2011
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