quarta-feira, 6 de julho de 2011

Aspectos de Ontem - Duas noites tristes e célebres - a das facas longas e a de Cristal

          Ainda hoje ficamos estupefactos. Como foi possível que homens como Raimond Aron se não aperceberam do perigo eminente que era a subida ao poder de Hitler e do partido nacional-socialista alemão[1]? Aron reconhece-o nas suas memórias[2]: as câmaras de gás, o assassinato industrial de seres humanos, não, confesso, não os imaginei e, como não os podia imaginar, não soube deles.
Do mesmo modo se expressa Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura (1999), em Escrever depois de Auschwitz[3]: (…) por muito que a missão pedagógica dos Americanos nos obrigasse a ver aquelas imagens documentais a nós, que tínhamos dezassete, dezoito anos, tinha uma só resposta, dita e não dita, como consequência, mas de igual modo inabalável: Nunca os Alemães poderiam ter feito, jamais fizeram uma coisa destas [referindo-se claro está, a Treblinka, Sobibór e Auschwitz].
Estes dois acontecimentos (as duas noites), para quem, à época, deveria estar atento na pátria de Goethe e no resto da Europa, teriam despertado alguma inquietude.

No auge da carreira e do poder

Ambos aconteceram muito antes das câmaras de gás, dos postos crematórios, das experiências pseudo-científicas em seres humanos (inclusive crianças de 10 anos!), dos massacres a homossexuais, eslavos, ciganos, etc. E já anos antes na sua autobiografia, Mein Kampf (A Minha Luta. Noutras versões, O Meu Combate), Hitler descrevia como de repente tinha percebido que os judeus eram responsáveis pelos problemas da Alemanha. “Qualquer acto duvidoso, qualquer tipo de grosseria” na vida pública estava relacionada com os Judeus, escrevia o carniceiro. “Ao espetar uma faca [continuava o monstro] a esta espécie de abcesso descobre-se imediatamente, como uma larva num corpo putrefacto, um judeuzinho que muitas vezes cegava pela luz súbita…”[4].
O escritor transmontano, o médico bragançano Fernando Chiotte, narra-os com leveza no seu romance Gostaria de Morrer Naquela Noite[5]. Já Günter Grass no seu profundo romance, publicado em 1959, com o título O Tambor, agora traduzido para português pela Dom Quixote (2009), intitulado O Tambor de Lata, dedica um capítulo (Fé Esperança Amor) apenas a uma das noites: a de Cristal.
A Noite das facas Longas tem origem no renascimento da oposição a Hitler, incarnada por dois homens: Röhm, o chefe das SA, que censura Hitler por sacrificar à reacção a parte revolucionária e social do seu programa e von Papen que, em nome de uma direita conservadora que se apercebe das verdadeiras intenções maquiavélicas do chanceler, e denuncia no célebre discurso de Marburgo em 17 de Junho de 1934[6]. Era demasiado tarde.
Uma vala comum onde são depositados os corpos depois das experiências
Como falcão sobre presa, Hitler num acto de rapidez, na noite de 30 de Junho de 1934 chega de imprevisto a Munique. Procede à prisão de Röhm e dos seus principais lugar-tenentes. Ao mesmo tempo, Göring encarrega-se de eliminar os últimos adversários do nazismo em Berlim. No final desta trágica noite, Röhm Gregor Strasser e 77 oficiais das SA são abatidos, assim como os principais adversários pessoais de Hitler: von Khar, que fez malograr o Putsch em 1923, Edgar Jung, secretário de von Papen e inspirador do discurso de Marburgo, von Scheleicher, que tentou impedir Hitler de chegar ao poder em 1933. Só o vice-chanceler escapará milagrosamente à chacina das facas longas que provocou 1076 vítimas. Aterrorizada, a direita deixará o caminho livre ao histrião satânico nascido em 1889 na margem austríaca do Inn, de uma família de modestos funcionários.
Paul R. Maracin numa narrativa sobre o tema[7], afirma que os arquivos deste acto de selvajaria foram queimados pelos nazis, não se sabendo assim ao certo o número de pessoas mortas. E adianta que estas 48 horas mudaram o mundo.
A noite de Cristal (Kristallnacht) não é um ajuste de contas com antigos companheiros do regime, mas sim com os Judeus.
Ernest von Rath, diplomata da embaixada alemã em Paris, foi morto na manhã de 7 de Novembro de 1938, por um judeu polaco de 17 anos, Herschel Grynszpan[8]. O ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, lançou uma campanha de acusações aos judeus, que haviam de levar ao maior pogrom da história europeia moderna[9].
Durante a tarde e a noite de 9 para 10 de Novembro, centenas de sinagogas e lojas judaicas foram vandalizadas e saqueadas[10]. Os cemitérios profanados, assassinados cerca de 100 judeus e dezenas de milhares presos e enviados para campos de concentração. O regime nazi atribuiu-lhes a responsabilidade destes acontecimentos e, depois de os prender e matar, ainda instituiu, aos sobreviventes, uma multa de mil milhões de marcos.
Elie Wiesel diria que essa noite fora “uma bofetada no rosto da Humanidade”. Mas a Europa e o Mundo ignoraram os sinais, enterrando a cabeça na areia. O Holocausto não tardaria…


Armando Palavras



[1]Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, que em primeira mão passou por perseguir comunistas e sociais-democratas.
[2]Memórias, Guerra e Paz, 2007.
[3]Dom Quixote, 2008.
[4]BULLOCK, Alan, Hitler e Stalin: Parallel Lives, London, 1993, p. 24.
[5]Zéfiro, Ventos do Imaginário, 2008.
[6]Pierre Thibault, O Período das Ditaduras 1918-1947, Dom Quixote, 1981, p. 168.
[7]A Noite das Facas Longas, ed. Texto & Grafia – 2ªed -, 2010.
[8]Na semana anterior os seus pais e mais 17 mil judeus polacos haviam sido expulsos da Alemanha.
[9]Stéphane Bruchfeld / Paul A. Levine, Contai aos vossos filhos…, Gótica, Lisboa, 2000.
[10] O nome de Noite de Cristal deriva da quantidade de vidros partidos das vitrinas das lojas, vitrais das sinagogas, etc.

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