terça-feira, 17 de setembro de 2024

Corte de Cabelo


JORGE  GOLIAS



Estou com o cabelo demasiado crescido, mas tive de esperar que o barbeiro regressasse de férias. Marquei para Quarta porque muita gente se me antecipou. O Francimar, brasileiro, aqui já bem estabelecido, por conta própria, com uma boa carteira de clientes, pois até o João Afonso vem de Sintra a Carnaxide, trata bem os clientes e tem boa conversa. Creio que, esperto, sabe como dar de comer a palha ao burro.

No meu tempo de criança, quando comecei a ir ao barbeiro sozinho, respondia à pergunta de como é que queria o corte assim: -meia cabeleira! E, pronto, era fórmula mágica para sair dali sem parecer um recruta ou um recluso. O Barbeiro era do Benfica pela simples razão de que todos os clientes eram do Benfica. Creio que adeptos de outros clubes, muito poucos, iam a barbeiros da sua cor, ou sem cor, como eu, pois era quase impossível aguentar meia hora de conversa sem falar da bola. E a alternativa à bola era a má-língua, onde se dizia mal de tudo e de todos. Ah, do Regime também se falava (mal) se o ambiente estava despoluído.

No barbeiro sabia-se então da vida dos concidadãos, das traições conjugais, dos namoros escondidos, dos negócios de vento em popa ou a caminho da falência, do restaurante que servia o melhor rancho, da tasca que tinha o melhor vinho.

Ou seja, a barbearia era todo o conjunto de jornais e de redes sociais da época, com a vantagem de ser à borla, e com a desvantagem de não ser sujeita a fact-checking. O corrector sugeriu-me trocar o calão à borla por de graça. Lá está aqui como na IA não entra o humor, nem as subtilezas da linguagem, o que nos deixa descansados. Os únicos jornais que havia no antigo barbeiro eram os desportivos, sobretudo a Bola. Hoje, poderá haver algum Correio da Manhã, mas todo o mundo puxa logo do Tm como um cowboy da pistola. Não há, portanto, Público, nem JN ou DN, nem um Expresso atrasado, porque não é preciso.

No Verão corto sempre um pouco mais o cabelo, para andar mais fresco e para aguentar melhor o vento. O uso do cabelo curto começou na AM e continuou-se pela vida militar, excepção ao período do 25 de Abril (PREC) em que andávamos com fartas cabeleiras.

A ida ao barbeiro no tempo antigo não necessitava de marcação, o tempo de espera era curto e havia sempre uma cadeira para esperar sentado. Depois, aqueles minutos de conversa valiam sempre os magros escudos do preço a pagar. Nunca fiz barba e cabelo e mais tarde também a lavagem.

Mas, ainda mais lá para trás, um barbeiro tinha funções de saúde pública. Era ali que se arrancavam os dentes e se faziam pequenos curativos. Por isso esta velha profissão vinha nas estatísticas das profissões inventariadas pelos historiadores.

A moda que hoje alguns praticam de rapar o cabelo da base até ao cocuruto já existiu no mundo antigo por outras razões. Na maior parte do território, as aldeias, não havia barbeiros e o corte era feito por um jeitoso no meio da rua com o paciente sentado num mocho. Era-lhe colocada uma malga na cabeça e com uma navalha de barba cortava-se tudo até à borda da malga. O sujeito assim tratado surgia algo parecido a um índio americano.

Esta crónica tem o objectivo de suscitar as memórias e a criatividade dos leitores para responderem com o que lhes vier à memória e da sua lembrança. Vamos lá.

 

1 comentário:

  1. No Brasil dos séculos XVI e XVII os barbeiros-cirurgiões, eram portugueses e espanhóis, cristãos-novos e meio-cristãos-novos que praticavam pequenas cirurgias, além de sangrar, sarjar, lancetar, aplicar bichas e ventosas e arrancar dentes, além de cortar o cabelo e a barba (do Google). Bom, por cá também era mais ou menos assim.

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NTMAD - LISBOA- nº 177 - Agosto 2024

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