ANTÓNIO MAGALHÃES
Vais para a tropa.
Pois claro, vamos lá então.
Apresento-me no Regimento de Lanceiros de Lisboa, Polícia
do Exército, na calçada da Ajuda.
A tia Ana tinha dito à minha mãe que havia lá um
sargento, que me livrava da tropa.
-Só tem que lá ir por uns dias, - disse a tia Ana de
Lisboa à minha mãe, - só para marcar ponto, e logo, logo, está de volta a
Felgueiras.
Quem me visse agora teria dificuldades de visualizar esta,
apesar de tudo modesta revelação, mas nessa altura além de muito magro eu era
também muito pálido.
Quando cheguei à porta de armas do Regimento de
Lanceiros, dois tipos faziam guarda, enfiados numa farda militar impecavelmente
limpa e engomada, e o capacete branco com as letras PE a preto, atarraxado na
cabeça.
Como o capacete lhes assentava quase na cana do nariz
tinham que levantar bem a cabeça para puderem ver o mundo fora dele.
Um deles perguntou-me
- O que é que tas aqui a fazer pá?
E o outro, sem que eu tivesse tempo para responder,
disse.
-Alguém te foi buscar a casa para te trazer para aqui?
Ao que eu respondi, - Não, eu vim cá ter…
Entreolharam-se de maneira sarcástica até que um disse,
- És mesmo estupido, vens para aqui de livre vontade, - e
eu percebi que ele falava pelos dois – toca a entrar lá para dentro. Vais
direitinho à Isabel Queiroz do Vale.
Ainda pensei argumentar que não foi por livre vontade não
senhor que eu lá fui parar, mas fiquei tão curioso com essa tal isabel Queiroz
do Vale que achei desnecessário começar um argumento que estava condenado ao
fracasso. Os meses que se seguiram foram
a prova disso.
Afinal a tal Isabel,
era a barbearia do regimento onde dois sargentos na idade da reforma,
pensei eu na altura, um deles muito magro e alto, o outro a contas com uma
barriga que mais parecia um bombo do agrupamento de Zés Pereiras, tosquiavam os
recrutas como se fossem ovelhas.
Calhou-me o gordo.
Pegou na máquina de pente um, e só para se divertir abriu
uma espécie de estrada na minha cabeça. Depois olhou-me através do espelho que
para desgosto de quem tinha a infelicidade de o ter à sua frente, rasgou um
sorriso de orelha a orelha, sorriso aparvalhado apesar de tudo, e disse.
- Fica-te a matar.
E de certa maneira eu achei que ele até tinha razão por
que naquele momento senti-me morrer ao prever o meu novo look depois dele
acabar a tortura que tinha iniciado com aquele primeiro desbaste.
Estive tentado a dizer-lhe, - não há necessidade de me
torturar desta maneira porque de acordo com a tia Ana eu praticamente só venho
aqui para marcar ponto. É que… bem vê, eu não fui feito para estas coisas
devido à minha palidez, e muito provavelmente à falta de peso requerida pelo
exército Português, necessária às exigências mínimas para o peso de um soldado.
Mas da maneira que o gordo me agarrava o cachaço para me
inclinar a cabeça para a frente, no sentido de poder passar a máquina pela
nuca, eu percebi que o melhor era guardar certas informações para quando
chegasse o momento certo.
Quando ele terminou o seu trabalho, que lhe estava a dar
imenso gozo, isso ele não fazia questão de esconder, eu olhei-me no espelho e
senti que o mundo tinha iniciado ali naquele momento uma enorme conspiração
contra mim. Desconhecia, no entanto, os motivos.
Na primeira semana senti que estava preso a um sonho, a
fazer uma corrida, onde apesar dos desesperados esforços para ganhar velocidade,
o corpo retesado, parecia não sair do sítio. Quanto mais os esforços maior a
frustração.
Levava murros no peito por tudo e por nada.
- De onde é você, soldado?
- Sou de Felgueiras…!
- Felgueiras, e onde fica essa merda?
- Cerca de 50km do Porto
- 50 km o caralho.
E…bum…mais um murro no peito.
Ou,
- Você sabe quem eu sou, soldado?
E eu a pensar, não faço a mínima ideia.
- Você sabe quem eu sou?
E os gritos a furarem-me os tímpanos, e a voz forte e
atemorizadora a fazer os seus estragos na boca do estômago e a despoletar uma
fraqueza estranha nas pernas.
E eu, preso nos meus pensamentos, incapaz de expressar em
palavras sonoras o que ia dizendo a mim mesmo.
“Como posso eu saber se até este preciso momento nunca o
tinha visto mais gordo ou mais magro.”
- Tenente-coronel Montalvão Machado.
E…pum…mais um murro no peito.
Fazem isto com uma normalidade que esta gente do exército
português nem precisaria de balas para ganhar uma guerra. Faziam-no à murraça
no peito.
De repente surge-me no pensamento o agora tão saudoso
Raúl Solnado, - ele não mata, mas desmoraliza muito.
De maneiras que, as primeiras semanas foi uma consumição
para evitar tudo quanto não fossem outros recrutas.
Quanto mais se evitassem, especialmente os graduados,
menos murros no peito se levava.
Um dia ao sair de uma esquina, (porque as esquinas não
produzem só mulheres da má vida, carteiristas, ou amantes do crime) encontro um
velho sargento.
Nessa altura nem eu nem qualquer outro recruta sabíamos
distinguir um sargento de um general.
O sargento parou subitamente e eu, atrapalhado como
fiquei, fiz logo a continência e disponibilizei de imediato o peito para o
murro da praxe.
No entanto, o sargento nem se moveu. Até parece que ficou
pregado ao chão.
- Soldado, não consigo passar. Tenho um tronco à minha
frente.
Aflito, olhei em redor, mas não via nada que obstruísse o
seu caminho.
Será que o tronco era eu? Pouco plausível. Magro e pálido
como eu era nem sequer um ramo era a expressão melhor. Talvez um pequeno galho.
Pesado e sonolento, quase preguiçoso, voltou a retorquir,
-Retire-me esse tronco do caminho.
Desesperado clamei logo por uma ajuda divina.
“Ó meu Deus, ó meu Deus, o que quer ele dizer com um
tronco? Pensa, pensa, o perigo desta guerra não está nas balas do inimigo, mas
sim nas metáforas que esta gente inventa.
O nervosismo e a ansiedade apoderaram-se de mim e eu
comecei a dançar de um pé para o outro, de olhos ávidos à procura de uma
metáfora que encaixasse na perceção de um tronco, vista pelo sargento.
Aquele formigueiro que tinha na barriga e o aperto na
bexiga enquanto dançava de um pé para o outro, de repente desapareceu.
Encontrei.
À frente do sargento estava um fósforo.
- Eureka.
Peguei no fósforo do chão.
O sargento sem mais delongas continuou o seu caminho
depois de fazer uma ligeira continência. Eu respondi à continência e
aproveitando que tinha a mão perto da testa limpei o suor que escorria em bica.
Três semanas de martírio e torturas depois, o tal
sargento que me haveria de livrar da tropa tinha passado a informação à tia
Ana. Não podia fazer nada enquanto eu não baixasse à enfermaria.
- E que digo eu na enfermaria? Que sou magro e pálido?
Dir-me-iam provavelmente, - não fumes daquela merda que faz rir e dá fome.
Mas um dia, o pelotão sai para uma c. a. m.
À medida que corríamos calçada da Ajuda abaixo, de farda,
botas pesadonas, G3 a tiracolo e uma mochila com dois calhaus lá dentro, alguns
espertalhões iam passando a informação de peito inchado, tentando incutir o
medo aos outros, para esconderem os seus próprios medos.
-C. a. m. corrida até à morte,
E dos lábios nascia-lhes um sorriso daqueles de desafiar
soco, mas mal chegados a Belém já os fígados lhe saiam pela boca, a meio de
caminho entre Belém e Algés pareciam locomotivas a largar fumo pelas orelhas e
narinas. Sucumbiam ao chegar a Algés.
Sei bem do que falo porque passei por isto tudo, com a
exceção de sucumbir à chegada a Algés, por isso, quando o resto do pelotão que
ainda se mantinha de pé, regressou ao quartel, sem sequer ter descansado, eu
regressei com eles.
Mas no regresso já não era eu que corria. O subconsciente
tem e faz coisas extraordinárias.
O furriel apercebeu-se. Colou-se ao meu lado e gritou-me
aos ouvidos,
- Dê-me a sua arma soldado, eu alivio-lhe a carga.
Mas uma fininha e distante voz do meu subconsciente
repetia aos meus ouvidos o que me haviam dito no dia em que me entregaram a G3.
“A partir de agora soldado esta arma é a sua namorada.
Não a largue, não a deixe ao deus dará, não deixe que mais ninguém lhe ponha a
mão em cima.
É claro que ninguém quer que lhe ponham em cima da
namorada o que quer que seja, por isso, mesmo sem forças para lhe responder
verbalmente, porque as guardava para a corrida, apertei a alça da G3 com força
e não deixei que ele ma tirasse. Ele percebeu, e mais tarde diria em frente de
todo o pelotão que eu tinha um fortíssimo espírito de sacrifício.
Mas na altura lembro-me de ter pensado, “antes morrer a
tentar do que desistir”.
Quando entramos no quartel já a corrida tinha acabado e
eu ainda corria em círculos, incapaz de parar as pernas que apesar de exaustas
tinham ganho o balanço da corrida.
Quando finalmente me deixei cair por terra o meu amigo
Sérgio veio segredar-me ao ouvido.
-Ora cá está a tua oportunidade de baixares à enfermaria.
Mas eu que, apesar de todas as indicações em contrário me
sentia satisfeitíssimo por não ter desistido, por ter tido o raro privilégio de
ter experimentado na pele que a força de vontade supera qualquer fraqueza ou
dificuldade do corpo, como poderia dizer com convicção que precisava de
assistência médica quando o pior já eu tinha feito.
O Sérgio insistiu,
-Sentes-te tonto, mal consegues respirar e até parece que
vais morrer.
De maneiras que eu comecei a arfar, ao mesmo tempo que
levava a mão ao peito.
Tive que improvisar tão bem que de facto, quando o Sérgio
já gritava por ajuda eu me sentia mesmo mal.
Levaram-me para a enfermaria.
Um outro sargento bem mais novo dos que eu estava
habituado a ver, grandalhão e forte de tronco, espetou-me uma injeção nas
nádegas mesmo antes de eu ter tempo para me queixar.
Vinte e quatro horas depois, duas injeções próprias para
rinocerontes, e uma raio x aos pulmões, o sargento grandalhão veio dizer.
- Estás apto a passares-te ao fresco daqui.
Como eu tinha cumprido com a minha parte, ou seja, baixei
à enfermaria tal como sugerido, assumi que o tal sargento que me iria livrar da
tropa já tinha cumprido com a sua parte. Por isso, com um entusiasmo que apesar
de tudo me esforcei para que fosse comedido, respondi com um sorriso de dentes
cerrados e lábios abertos,
- Para casa, quer o meu sargento dizer…?
Lá do alto dos seus olhinhos piscos e semicerrados, o
sargento olhou-me com um certo ar de fúria e desprezo à mistura, quebrou pela
cintura até ficar com a sua bocarra perto do meu ouvido, e gritou-me de uma
maneira que se deveria ouvir em Almada,
- Para o seu pelotão sua Amélia de merda.
E…pum, lá veio um murro no peito.
Do meu, um metro e setenta e cinco centímetros de altura
senti-me encolher cerca de um metro e setenta, e dos cinco centímetros que
ainda me restavam, aventurei-me a dizer-lhe,
É que…bem vê meu sargento, foi-me dito para eu baixar à
enfermaria e que a partir daqui…
A partir daqui já não consegui acabar a frase. O sargento
deitou a mão ao coldre da pistola Walther, (Walter) e com os olhos a
soltarem-se-lhe de órbita, voltou a gritar,
- Passe-se ao caralho daqui para fora sua Amélia ou
dou-lhe três tiros na testa que lhe arrebento os miolos.
Peguei no meu encolhido metro e setenta, juntei-o com os
cinco centímetros que me restavam e saí dali aterrorizado, a pensar comigo
mesmo, “Raios parta, o que é que o exército português terá contra as Amélias…”
Mais tarde disse ao Sérgio,
- Vamos esquecer essa tontaria de ficar livre da tropa.
Fico cá até ao fim.
E ainda bem que a coisa se desenrolou dessa maneira
porque foi a mais louca, mas também imperdível, experiência da minha vida.
Três meses depois passo da calçada da Ajuda para o
regimento de Lanceiros do sul, em Évora.
Continua…
(Retalhos do Quotidiano páginas 77 a 83)
António Magalhães
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