17/1/2019
A extensão da escolaridade obrigatória
ao 12.º ano foi feita sem que a “massificação” acarretasse degradação do
ensino. Atrair mais jovens para o superior pode e deve ser feito sem reduzir a
exigência.
Recentemente, falou-se muito de propinas
universitárias e de “massificar” o ensino superior. Mas tudo cheira a bazar
eleitoral, sem qualquer compromisso, talvez sem qualquer efeito e, mais do que
provável, sem qualquer resultado. Não vale, pois, muito a pena levar a sério
estas declarações. São semelhantes às declarações repetidas de que irão começar
imediatamente as obras nas escolas, desde os liceus Camões e Alexandre
Herculano até ao Conservatório, que afinal continuam a degradar-se, ou de que a
dimensão das turmas irá ser reduzida, e apenas o tem sido pouco a pouco e não
para todas as turmas, e por aí adiante. O que é espantoso é que grande parte da
imprensa leva a sério estas declarações, alinhando no ridículo de anunciar as
mesmas coisas uma vez, mais outra, e mais outra, dizendo sempre que agora é que
é. Passaram três anos e em muitos aspetos continuamos na mesma, ou quase na
mesma.
Mas há algo que tem sido feito: reduzir
o rigor e a ambição. E isso é sério. Tivemos recentemente vários exemplos de
massificação do ensino, e vale a pena refletirmos sobre esses exemplos. Como
testemunha direta que fui, perdoar-me-ão algumas explicações na primeira
pessoa.
Entre 2012 e 2015 registaram-se duas
mudanças de grande alcance no nosso sistema de ensino (e já não falo dos novos
cursos profissionais no superior, os TeSP). A primeira foi a introdução do
Inglês como disciplina obrigatória. Foi um progresso decisivo. Muitos não o
notaram, pois tiveram Inglês enquanto estavam na escola, mas em 2011 essa
língua não era obrigatória em nenhum ano de escolaridade. Tinha-se introduzido
o Inglês nas chamadas Atividades de Enriquecimento Curricular, nos tempos
adicionais das escolas de 1.º ciclo, mas isso nunca foi generalizado nem
obrigatório. Por vezes os alunos tinham alguma exposição ao Inglês nessas
atividades, muitos passavam o segundo ciclo sem contactarem com essa língua,
depois recomeçavam a estudá-la no 7.º ano, os que recomeçavam. Em paralelo, a
“educação cívica”, o chamado “ensino acompanhado” e a “área de projeto” claro
que eram obrigatórios…
No ano letivo de 2012/2013 (DL 139/2012
de 5 de julho), introduziu-se o Inglês obrigatório nos anos 5.º a 9.º. No ano
2015/2016 (DL 176/2014 de 12 de dezembro), passaram a ser incluídos o 3.º e 4.º
anos de escolaridade. Quer dizer, passou-se de uma situação em que Inglês não
era obrigatório em nenhum ano de escolaridade, que era o que acontecia em 2011,
apesar das grandes juras de preocupação com o ensino de línguas, para ele ser
obrigatório ao longo de sete anos consecutivos, começando no 3.º ano, ou seja,
com os jovens de 7 e 8 anos de idade. Imagina-se que isto será decisivo para as
novas gerações, que estarão muito mais à vontade no mundo moderno. Foi uma
revolução silenciosa. Tudo funcionou bem, sem atrasos ou falhas de professores,
de materiais ou de salas de aula.
O leitor sabia disto? Não perguntará
porque não se fala mais, com orgulho, deste grande sucesso do nosso sistema de
ensino?
A segunda revolução silenciosa foi ainda
mais marcante. No ano letivo de 2012/2013 a escolaridade obrigatória
estendeu-se ao Secundário, ano após ano, pelo que a partir de 2015 abrangeu
todos os alunos. Esta mudança foi também feita sem problemas, sem faltas de
professores nem de salas de aula, e num momento de grandes dificuldades
financeiras. Já passaram alguns anos e os meus colegas de governo perdoar-me-ão
que adiante alguns pormenores sobre o que se passou.
Foi o primeiro grande debate no Conselho
de Ministros sobre Educação. A Assembleia da República tinha, anos antes,
legislado essa extensão da escolaridade obrigatória, num momento de euforia
financeira. Cabia a nós pô-la em prática, mas agora num momento de grande
depressão orçamental. O Ministro das Finanças, como lhe competia, perguntou se
essa extensão não podia ser adiada, e exigiu estimativas muito precisas do
excesso de despesa. Não encontrámos nada rigoroso preparado, e tivemos de fazer
estimativas e estudos muito pormenorizados, concelho a concelho, por vezes
freguesia a freguesia. Como mesmo quem não conheça o funcionamento do
Ministério imagina, as contas não podem ser só globais. Existir um excesso de
salas e de professores em Mirandela, por hipótese, não significa que não se
registem faltas em Sintra ou Mafra. Era preciso ver o que faria falta, local a
local. Vítor Gaspar, que era muito mais razoável do que ele próprio queria
fazer o país crer, ajudou a rever as estimativas financeiras e a validá-las.
Foram sessões longas, por vezes pela noite dentro. O mesmo se fez aliás com a
Ciência, que discutimos frequentemente — o próprio Mariano Gago terá
reconhecido que a continuidade da Ciência portuguesa (Expresso 25/5/2015) se
deveu muito a esse esforço.
Hoje, que o investimento na Ciência está
no nível mais baixo dos últimos 11 anos, é natural que nos surpreendamos com o
que se conseguiu naquele passado difícil. E que nos surpreendamos também com a
complacência perante a extrema austeridade atual: muita imprensa noticia
repetidamente as declarações orçamentais, mas silencia a realidade executada.
Adiante! O mais curioso é que o Conselho
de Ministros, uma vez estabelecido o acordo entre os ministros das Finanças e
da Educação, acordo impulsionado pelo primeiro ministro, levantou ainda
reticências. Alguns membros do governo relembraram o que se tinha passado com o
alargamento da escolaridade obrigatória do 6.º para o 9.º ano e sublinharam que
o terceiro ciclo se tinha degradado com essa massificação. Quereríamos que o
mesmo se passasse agora com o Secundário, com os anos pré-universitários?
Estávamos alinhados! Relembrámos os
estudos de Eric Hanushek e de outros economistas da educação que mostram não
existir uma correlação forte entre a duração da escolaridade e a preparação dos
estudantes. A correlação forte é a que existe entre a qualidade do ensino e a
preparação dos estudantes. Seria possível alargar a escolaridade, “massificar”,
mantendo a qualidade?
Não só era possível, como o país
conseguiu fazê-lo. Em 2015, quando foi feito o novo inquérito PISA, verificámos
que os nossos alunos, na transição entre o Básico e o Secundário, tinham
melhorado em todas as áreas. Onde estava o segredo? Em coisas muito simples.
Precisamente aquelas que são quase óbvias, mas que muitas vezes não se querem
enfrentar.
Em primeiro lugar, a valorização do
conhecimento, o desenho de um currículo exigente, ambicioso, organizado e
progressivo. Com destaque às disciplinas estruturantes: em primeiro lugar o
Português e a Matemática, logo seguidos da História, da Geografia, das
Ciências. Em segundo lugar, o acompanhamento desse currículo, o que implica
metas sequenciais, e o controlo do alcance pelos alunos dessas metas. Em terceiro
lugar, uma avaliação externa regular, que permita alinhar as escolas pelos
objetivos nacionais e que apoie o esforço de exigência dos professores. Em
quarto lugar, uma autonomia das escolas e uma flexibilidade de execução do
currículo que, ao invés de permitir que tudo se faça sem qualidade, permita aos
professores e às escolas acompanharem particularmente os alunos com mais
dificuldades. Em quinto lugar, vias alternativas, profissionalizantes, que
forneçam uma opção para quem pretende um ensino mais prático e quer ter a
possibilidade de começar rapidamente uma profissão. Foram estas medidas que
ficaram cristalizadas num programa completo de promoção do sucesso escolar que
acompanhou a extensão da escolaridade obrigatória (D-L 176/2012 e D-L 139/2012).
O estudo PISA de 2015 (p. 266) reconhece a eficácia deste plano, ao notar que
Portugal foi, neste período, um dos poucos países que conseguiram
simultaneamente aumentar o número de alunos com desempenho superior e diminuir
o número de alunos com desempenho inferior. Estes progressos foram traduzidos
também na diminuição do abandono escolar, que se reduziu de c. 25% em junho de
2011 para 13,7% em dezembro de 2015.
Tudo isto significou democratizar o
ensino, ou seja, dar oportunidade a todos para progredirem com uma boa
formação. Infelizmente, quando hoje se fala de “massificar” o ensino superior
fala-se precisamente do contrário, fala-se de simplificar o acesso e de facilitar
a todo o custo um sucesso estatístico, de tal forma que se pode pôr em causa a
qualidade das universidades e politécnicos. A ser assim, prejudicam-se afinal
os que mais deveriam lucrar com a oportunidade de um curso superior, os que
apenas no ensino público poderiam ter um caminho para uma formação exigente.
Repare-se que o que está em causa
arrisca-se a ser precisamente o contrário do que nos permitiu progredir entre
2012 e 2015, com a extensão da escolaridade obrigatória. O currículo é diluído
e a “flexibilidade curricular” não é acompanhada de uma avaliação que garanta o
progresso dos estudantes. Em vez de ajudar especialmente os alunos com mais
dificuldades para os colocar nos patamares desejados, degradam-se esses
patamares para “evitar a seleção”, “promover a inclusão” e “garantir o
sucesso”. Em vez de desenvolver vias profissionalizantes que permitam chegar a
uma qualificação real, restringem-se essas vias, pretendendo-se usá-las como
vias simplificadas para se chegar, sem preparação, à universidade.
Porque se tenta, por vezes, fazer tudo
ao contrário?
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