Oh,
sim, António Costa virou a página da austeridade – só que na página seguinte
encontrou a mesma austeridade de que se prometeu livrar.
Há
um famoso paradoxo filosófico que se pode formular assim: se eu substituir a
lâmina de uma faca, e de seguida o seu cabo, ela ainda é a mesma faca? Numa
perspectiva ontológica, a questão não é simples. Mas numa perspectiva meramente
utilitária, o que interessa é haver faca e ela continuar a cortar.
O
orçamento de Estado do actual governo é como a faca do paradoxo: um orçamento
que entrou em Bruxelas disposto a “virar a página da austeridade” e saiu com
mil milhões de euros de austeridade em cima ainda pode ser considerado o mesmo
orçamento? A resposta ontológica é “não”. Se compararmos o programa original de
grupo de trabalho de Mário Centeno e o Frankenstein orçamental que ele se viu
obrigado a defender (com evidentes dificuldades) na sexta-feira, só mesmo com
testes genéticos aprofundadíssimos será possível encontrar vestígios de um pai
comum. Mais. Quando António Costa afirma que, “ao contrário do que muitos
desejavam, a Comissão Europeia não chumbou o primeiro orçamento do governo”,
importa repor a verdade: ai chumbou, chumbou. O esboço do primeiro orçamento
foi chumbadíssimo. Aquilo que a Comissão não chumbou foi a última versão desse
orçamento, carregadíssima de impostos e com as metas revistas, que já pouco
tinha a ver com o original.
Mas
tudo isto interessa muito pouco a António Costa – afinal, ele é o rei do
pragmatismo. Desde que se continue a chamar “orçamento” e passe em Bruxelas e
em São Bento, por ele está tudo bem. Evidentemente, não é um “tudo bem” sério,
como se verificou nas suas declarações de sábado, ao ser confrontado com o
aumento colossal de impostos indirectos nos combustíveis e no tabaco. Nesse
momento, a demagogia de Costa elevou-se à estratosfera, ao aconselhar os
portugueses a “fumar menos” e a “usar transportes públicos”. O que ele se
esqueceu de acrescentar é que se os portugueses começarem a fumar muito menos e
a usar muito mais transportes públicos, então as receitas destes impostos caem
a pique e o governo tem de encontrar medidas alternativas para compensar a
queda na receita.
Oh,
sim, António Costa virou a página da austeridade – só que na página seguinte
encontrou a mesma austeridade de que se prometeu livrar. Enfim, não é bem a
mesma austeridade. A austeridade da direita era feita de impostos directos. A
austeridade da esquerda privilegia os indirectos. Não é já a TINA – é a irmã
gémea, a Tininha.
Mas
agora vêm as boas notícias: se o novo orçamento tem tudo para correr mal em
termos económicos, dada a manifesta ausência de uma perspectiva de futuro e de
um caminho sustentável para as finanças públicas, a sua aprovação em Bruxelas,
ainda que com reservas, é uma boa notícia política. A ninguém aproveitava uma
crise neste momento. Se o regoverno de António Costa conseguiu instalar-se, há
que o deixar regovernar. A frente de esquerda tem de poder praticar todas as
suas espectaculares políticas de crescimento e tem de lhe ser dado tempo para
elas falharem (mais uma vez). Ora, este orçamento é suficientemente mau para
que todos percebam onde essas políticas nos levam (mais uma vez); mas não
suficientemente mau, graças à intervenção da Comissão Europeia, para obrigar a
um novo resgate em 2018. Nesse sentido, não vale a pena dramatizar, porque
poderia ter sido bem pior – bastaria Bruxelas ter engolido a matemática à
portuguesa. Como não engoliu, o regoverno merece agora uma folga, para poder
namorar com a Tininha.
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