Jorge Lage |
Quase toda a aldeia parava para os
cumprimentos. O cortejo começava na travessia das Barcas de Chelas, parava na
Casinha da Barca e segui pela Canelha da Barca acima, parando no terreiro junto
à minha casa paterna.
Algumas mulheres esqueciam-se dos
cozinhados nas panelas ao lume e esturricavam. Outros, com o cinto do estômago
apertadíssimo e assobiar ar e «bento», chamavam pelas mulheres para comer o que
a terra dava.
Reparem no pequeno diálogo de um casal
simples da aldeia:
- Oh! Mulher! vem lançar os mirros!
- espera que agora estou a ver os
«fanfeses»!
- deixa lá os «fanfeses» vem mas é botar
os mirros!
Mas, o filho do António Luis, «O Francês»
(Francisco), era muito afável e conversador, chegava com a Amparo, a espanhola
cara-metade, as filhas, «Ingeles» e «Genobeba» e os maridos franceses (Henri) e
(Joachin), aquele de mais de 1,90 m e ambos altos para o «pobo» do burgo. Por
isso, dizia-se: - miúdos estadulhos! O António «Cuco» e a Tia Elisa Mateus,
ajudados pela filha, M.ª Emília, tinham trabalhos redobrados, para bem receber
o Francisco e a prole.
Das inovações que me lembro era os
«franceses» andarem de camisola interior branca de alça e as «francesas» de
blusas cavadas ou sem mangas. Uma revolução na estática moda rural! Até os
poucos relógios da aldeia andava pela hora velha ou hora solar e os dos
franceses p’la hora nova. Até no tempo os «fanfeses» estavam à frente.
Como não havia estrada para a minha
aldeia, deixavam o carro, numa casota preta de madeira que o feitor das Pinto
Azevedo lhes deixava guardar na Maravilha. O rafeiro do António «Cuco» e do
«Pirze» (genro), nessas férias, chegava a ser tratado a açúcar branco, ao ponto
de muitos, na aldeia, invejarem a boa vida do cão. Um fidalgo! Nós quase só
comíamos açúcar marelo ou escuro e ele a amassar uns «terrões» ou cubinhos de
açúcar!
Os franceses, ao contrário dos demais,
eram sempre afáveis, respeitadores e conversadores e passavam o tempo no ócio.
Uma vez por festa, chegavam a fazer umas canecas de vinho doce (adoçado com
laranjada ou gasosa) e distribuíam pelos vizinhos e pelos presentes, junto à
taberna da «Questina» ou à do Serafim do Xico Maria Mateus. Quando juntavam os
ex-Franceses que emigraram, no pós-1.ª Grande Guerra, e voltaram, gerava-se um
diálogo galicisado, em que entrava o Francisco Moleiro, o «Flintro» e o
Maximino da Zefa e outros. Cada qual procurava melhor nota no seu francês
engrolado. Mas o que falava melhor era o Francisco Moleiro. Era um cavalheiro.
Os franceses também iam até ao rio Rabaçal banhar-se, porque as suas águas não
sofriam o efeito da mineração do rio Tuela, por altura de Ervedosa.
Mas, para mim, férias era o tempo de aulas
e quando saía da escola primária tinha sempre trabalho a fazer. Ir com alguma
ovelha parida fartá-la para uma borda ou na ferrã. Ir segar a ferrã, fazer o
nabal, esbandeirar o milho ou segar uma carga de cevada verde para a cria.
Durante as aulas, nem tempo tinha de olhar para a lousa dos deveres ou para a
lição do livro ou trecho de história. Quando tinha problemas ou redacção para
casa, estava sempre à espera da noite para que os meus irmãos me ensinassem o
que não sabia e a pouca vontade minha, estimulada pelas reguadas da tortura,
esbarrava na indiferença dos meus irmãos, pingando, muitas vezes, a lágrima.
As tardes de Verão era certo e sabido que me esperava, o levar os «beis» para o lameiro do Fojo, da Chouza, de Vale das Mós, ou dos Campassóis (termo dos Eixes) e para as regatas do rio Rabaçal. O regresso tinha que ser sempre ao lusco-fusco, quando os demais raparigos escachouçavam pelo Terreiro do Tanque (Eiras), jogando ao rou-rou, ao arranca-cevada, ao esconde-esconde, aos reis-pretos. O apetite da brincadeira era maior quando via que andava no grupo alguma rapariga. Pareciam-me todas bonitas. Quando aconteciam brincadeiras conjuntas, era certo e sabido que me chegava mais a elas, aproveitando, quando podia, para me rebolar, agarrar e sentir o calor do proibido. Quando chegavam grandes carros de feno, para meter em espaços exíguos, era sempre voluntário, para o calcar e rebolar-me com alguma cachopa galhofeira. Na aldeia não se namorava em pequeno ou espigadote, apenas se «gostava» mais dumas do que de outras. Era tudo muito são, comparado com o que hoje é trivial.
Depois, deixei a aldeia e rumei ao Colégio
Marista dos Pousos (Leiria), regressando nas curtas férias de Verão
transformado e com os horizontes de vida mais abertos. Passei a ser um aluno e
gaiato exemplar, apenas sobressaindo a rebeldia com alguma contrariedade ou
injustiça. Passei a ser o menino Jorginho da «Guitéria». Ainda hoje sou o
«Jorginho» para algumas pessoas da aldeia.
No mês de férias, que voavam mais rápido
que um fim-de-semana festivo, passei a ter um comportamento de gente crescida,
mas o levar os bois e depois as «bacas» a pastar tocava-me todas as tardes e
tinha como atracção montar uma égua bonita, mansa e muito veloz. Mas quando não
havia pasto com os bois, havia rega nas cortinhas, com a nora a marcar o ritmo
lento do «hiiii…tan-tan» e a burra a arrastar-se como uma zorra, que teima em
não fazer mexer o baldão, a guia e os alcatruzes.
E lá ia mais uma cossa com uma vara de
marmeleiro no lombo, ficando a andar de lado como os de Caravelas. Regados os
talhos do «renobo», era tempo de regresso, pela hora do calor, com os moscardos
a atacarem a besta e as moscas garejeiras a enfiarem-se-lhe pelas pregas da
rabada e das narinas.
Nas deslocações de égua, era um cavalgar
desabrido a galope, ao ponto de, às vezes, as velhinhas ficarem a implorar à
Senhora do Amparo e aos santos para que não me matasse. E foram atendidas.
Jorge Lage – jorgelage@portugalmail.com – 05JUL2014
Provérbios:
Lua
Nova setembrina, para sete lados se inclina.
A
Senhora da Serra tira a merenda e dá a vela.
Bô
cão de caça até à morte dá ao rabo.
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