Alice Munro, a discreta canadiana
que ganhou o Nobel da Literatura.
Nobel da Literatura para a
contista canadiana, que narra os sentimentos grandes de pessoas pequenas, como
cada um de nós
Três horas de carro separam
Toronto de Clinton, Ontario, povoação com três mil habitantes onde vivia até há
bem pouco tempo a maior parte do ano. Aqui trabalhava Alice Munro, no retiro
rural onde nasceu o segundo marido, o geógrafo Gerry Fremlin, que morreu em
Abril deste ano, com vista para um excêntrico jardim, pilhas de livros a rasar
os tectos e uma máquina de escrever manual, todos eles preservados da agenda
profissional. "Vamos manter os negócios no exterior", pediu a mais
recente Nobel da Literatura à "The Paris Review", quando Jeanne
McCulloch e Mona Simpson embarcaram de La Guardia a caminho de uma entrevista e
a encontraram serenamente entre tachos.
"Apesar das suas
consideráveis conquistas, Munro continua a falar da escrita com alguma da
reverência e insegurança que se escuta dos iniciantes. Não tem a bravura nem a
agressividade de um escritor famoso e é muito fácil esquecer que é uma
delas", descreveriam Jeanne e Mona no seu artigo para a revista literária,
que conta com habituais contributos da própria Alice, cujas narrativas recheiam
também os conteúdos da "The New Yorker" ou "The Atlantic
Monthly".
A conversa teve como destino
final um hotel, mudança de rumo livre de peneiras de estrela inclinada ao
isolamento. Classificada após o seu primeiro grande prémio como "uma dona
de casa tímida", rótulo que lhe despertou a irritação, justifica-se que
poucos dos três mil habitantes soubessem que Clinton servia de morada a uma das
mais relevantes autoras canadianas. "Trabalhei muito. Escrevia enquanto as
miúdas faziam a sesta", recordou em entrevista a autora que apenas
produziu a primeira colecção de histórias aos 37 anos e que precisou de esperar
pela década de 70 para assistir ao reconhecimento fora de portas. Por essa
altura, já as filhas estavam criadas. A arrumação da casa e os livros
mantiveram-se como necessidades, cada uma a seu modo. A timidez, uma constante
tão inevitável como as anteriores. "Ser mulher e escrever era como ser uma
freak", sentenciou sem inibições ao "The Guardian", em 2003 gótico
do sul Aos 83 anos, torna-se a 13ª mulher e o primeiro autor de origem
canadiana estabelecido neste país a colher os louros - em 1976 foi a vez de
Saul Bellow, que apesar de ter nascido no Québec mudou-se para os EUA com nove
anos. Munro posicionava-se no segundo lugar na lista de apostas da Ladbroke,
imediatamente a seguir ao grande favorito, o japonês Haruki Murakami.
"Mestre contemporânea do conto" e "fantástica retratista de
seres humanos", foi assim que a Academia sueca a definiu ontem em
Estocolmo, quando anunciou o nome da vencedora, que no começo deste ano avançou
ao "Toronto Globe and Mail" a intenção de se reformar depois do
lançamento de "Amada Vida", a 14ª e mais recente reunião de pequenas
histórias, publicada este ano em Portugal.
Habituado a contactar o vencedor
do Nobel cerca de uma hora antes do anúncio oficial, o comité do Nobel revelou
via Twitter a dificuldade em chegar à escritora, acabando por deixar uma
mensagem de voz. Munro foi finalmente acordada pela filha, que comunicou a boa
nova. "Sabia que estava na corrida, mas nunca pensei que pudesse
ganhar", comentou à "Canadian Press", numa breve conversa
telefónica a partir de Victoria, onde agora se instala.
Com seis livros publicados em
Portugal, todos na Relógio d'Água, entre eles, 'Fugas', 'Demasiada Felicidade',
'O Amor de Uma Boa Mulher', ou 'A Vida de Castle Rock', Munro inscreve-se
incontornavelmente na malha de escritores canadianos. "Não consigo pensar
na paisagem literária do Canadá sem pensar nela", defendeu esta terça-feira
ao "Toronto Star" Geoffrey Taylor, o director do festival de Tributo
a Alice Munro agendado para 2 de Novembro.
Vencedora do Man Booker
International Prize de 2009, "a nossa Tchekohv", segundo a escritora
Cynthia Ozick, estabeleceu-se na ficção com as suas histórias acessíveis e
tocantes lavradas num cenário em tudo propício ao género Southern Ontario
Gothic. Grande parte dos seus contos situam-se em Huron County, localidade
sobrevoada por uma narrador omnisciente em busca de sentidos, enquanto homens e
mulheres se digladiam no solo, enredados nos frutos e caroços do tempo e do
amor.
"Costuma dizer-se que as
histórias de Munro têm tanta emoção que parecem romances. É uma daquelas
escritoras de quem não interessa se os seus livros são populares. Ela é a nossa
escritora. Pode ter a ver com a intimidade franca do seu tom, liberto de
ornamentos, e que apesar disso contém uma quantidade imensa de sentimentos
terríveis, sublimes e contraditórios", actualizou ontem Sasha Weiss, no
blogue da "The New Yorker".
Alice Laidlaw, que manteve o
apelido do primeiro marido, nasceu em Wingham, Ontario, a 10 de Julho de 1931.
Filha de um caçador e criador de martas e raposas e de uma professora, começou
a escrever pela adolescência, publicando a primeira história, "The Dimensions
of a Shadow", em 1950, ainda na universidade, tempos em que trabalhou como
empregada de mesa, apanhadora de tabaco e bibliotecária. Aos vinte anos
casou-se com James Munro, de quem manteve o apelido. Conciliou a escrita com as
tarefas domésticas, o cuidado das duas filhas pequenas e a gestão da livraria
ainda hoje de portas abertas, a Munro's Books", em Victoria, para onde o
casal se mudou em 1963. Cinco anos volvidos, chegava a estreia com "Dance
of the Happy Sahes", que lhe valeu o Governor General's Award, o mais
prestigiado prémio literário do Canadá. É a vez de suceder ao chinês Mo Yan no
mais importante troféu das letras.
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