quinta-feira, 26 de abril de 2012

Nelson Campos - O Museu como espaço de investigação e instrumento de comunicação - Reflexões a partir do caso do museu do ferro & da região de Moncorvo

Evolução do conceito de Museu – do edifício para o território



A instituição museal, desde a sua origem, nos primórdios do coleccionismo, para além da sua intenção de ordenar e interpretar o mundo a partir dos espécimes recolhidos, teve, à parte a missão de preservar e conservar, uma outra, que seria o seu fim último, a qual era a da comunicação/transmissão de um saber e/ou de uma estética, aos seus visitantes, fossem eles de colecção privada ou, muito mais tarde, pública (sobretudo após a Revolução Francesa). O objecto ganhou assim uma função semiótica, funcionando o museu como um interface entre o coleccionador/investigador e o público/visitante, usando-se, para isso, um discurso, uma narrativa, uma linguagem. A começar pela fachada do edifício, passando pela apresentação museográfica, acabando nos objectos, tudo emite uma mensagem e tudo é objecto de uma “escolha” (mais ou menos criteriosa), feita por indivíduos mais ou menos especialistas, o que, em última instância, não deixa de apresentar aquela carga de subjectividade, denotação e conotação, inerentes a qualquer discurso narrativo. 
Já ao longo do século XX, assistimos a uma evolução do conceito de museu, de instituição hierática, centrada num edifício mais ou menos solene (o museu clássico), para formas de musealização centradas no território, como foi o caso dos “ecomuseus” teorizados por G. Henri Rivière, com base na ideia de “museus de ar livre” colhida das experiências dos parques naturais. E é curioso que uma das experiências pioneiras (apesar de não se ter revelado tão bem sucedida quanto se esperava), tivesse incidido sobre uma comunidade urbana mineira, o projecto Creusot-Montceau-Les-Mines, inicialmente designado por Museu do Homem e da Indústria. Este novo conceito de Museu, procurava um forte vínculo com a comunidade, dela devendo emanar a própria estrutura museológica. “O museu não tem visitantes, tem habitantes”, proclamava Hugues de Varine, na década de 1970[1]

O caso de Moncorvo – centro mineiro

O caso que aqui apresentamos envolve igualmente um território que teve um passado ligado à mineração, em maior ou menor escala. Trata-se da área mineira da serra do Roborêdo, a maior jazida de minerais de ferro da Europa (com predominância de hematites), calculada em mais de 670 milhões de toneladas. Esta serra, com a altitute máxima de 915 m, encontra-se no concelho trasmontano de Torre de Moncorvo, entre os rios Sabor e Douro.
A exploração e transformação do minério de ferro de Torre de Moncorvo está documentada, com segurança, desde o período romano (séc. I d.C.), estendendo-se até ao final do séc. XVIII e, num caso, entrando ainda no início do séc. XIX (ferraria de Chapa-Cunha, único exemplo local em terá sido aplicada a técnica da forja catalã). Durante o século XIX esta região ficou à margem da Revolução Industrial europeia, apenas se registando um interesse pelas minas a partir do terceiro quartel desse século, embora os estudos geológicos de campo só se verificassem na transição para o século XX, já por conta dos empórios internacionais ligados ao ferro e ao aço, nomeadamente a Schneider & Cª.. Entre 1930 e 1942, este consórcio, com outras empresas sucedâneas promoveram actividades prospectivas que foram interrompidas pela 2ª. Grande Guerra. Já no pós-guerra, em 1951, constituiu-se uma empresa portuguesa, a Ferrominas Ldª., que iniciou a exploração de minérios em grande escala, sobretudo com objectivo de exportação para mistura com minerais mais ricos, já que o teor médio de fe do minério de Moncorvo era baixo e contendo muitas impurezas. Esta é a fase que ainda perdura bem na memória das pessoas locais, pois o período de laboração, embora sempre em decréscimo a partir da década de 1950, haveria de chegar ainda a 1985, gerando até grandes expectativas de relançamento das minas, no seu momento final[2]. Data deste período a criação de um pequeno museu de empresa, essencialmente dedicado ao Ferro, localizado no bairro mineiro do Carvalhal, recolhendo material diverso, desde uma colecção geológica, vestígios da época romana relacionados com a actividade mineira, documentos medievais, fotografias e objectos relacionados com a actividade extractiva do séc. XX[3].

Museu do Ferro – do bairro mineiro para a sede do concelho

Com o encerramento da Ferrominas (1986-1992) e a passagem das concessões e demais documentação para a Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM), com sede em Lisboa, o Museu do Ferro ficou praticamente inactivo, razão pela qual foi decidida a sua trasladação para a sede do concelho, nos inícios de 1995, através de um protocolo com a Câmara Municipal de Torre de Moncorvo que, por sua vez, estabeleceu uma parceria com uma associação local de estudo e defesa do património, denominada Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo (PARM), para efeitos de gestão do novo museu, intitulado agora Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. O museu ficou instalado num antigo solar de traça seiscentista, na imediação da igreja matriz (do século XVI) que é monumento nacional.
Desde 1995 a 2002 foram implementadas várias candidaturas a fundos comunitários que tornaram possível a recuperação do edifício e de um terreno anexo, que foi ajardinado, e onde se construiu um auditório para exposições temporárias e outros eventos. Além do núcleo temático dedicado ao Ferro, havia (e há) a ideia de se criar um núcleo didáctico que mostrasse outros aspectos da arqueologia e da história da região. Esta sala ainda não se encontra organizada, mas em contrapartida foi possível albergar na área de reservas várias peças arqueológicas que andavam dispersas pelo concelho, assim como o espólio resultante de prospecções e escavações realizadas no concelho.

Propostas para o futuro

Conseguida que foi esta plataforma de apoio, tipo Centro Interpretativo da região, era intenção dos responsáveis da associação, levar este programa museológico mais longe, estendendo-o sobre o território e reforçando a componente do Ferro, no âmbito de um Parque Mineiro, envolvendo o bairro da Ferrominas, convertido em aldeamento turístico, a zona de extracção a céu aberto (Alto da Carvalhosa) e as galerias (Cotovia, cabeço da Mua, Carvalhosa), bem como as estações de caminho de ferro de Torre de Moncorvo e do Carvalhal (da antiga linha do Sabor).  
Esta rede museal local passaria ainda por outros núcleos museológicos a criar ou em fase de implementação, por parte do município de Torre de Moncorvo, como por exemplo: o núcleo museológico dedicado ao antigo castelo medieval, a instalar nas ruínas do referido castelo, em pleno centro histórico de Torre de Moncorvo; o núcleo de Arte Sacra, na igreja da Misericórdia desta vila (em fase de concretização); uma forja de ferreiro e núcleo das Artes Cerâmicas, na aldeia de Felgar (em fase estudo); núcleo da Cera, num antigo lagar comunitário da cera, na aldeia de Felgueiras (em estudo). Poderiam ainda ficar associados à rede projectos museológicos de iniciativa privada, como por exemplo o Museu do Vinho da Quinta das Aveleiras (existente desde 1999) ou o Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior (inaugurado em 2009).
Igualmente nesta rede poderiam ser integrados alguns sítios arqueológicos, após o seu estudo, recuperação e valorização, como por exemplo o sítio arqueológico do Baldoeiro (com vestígios da Pré-história ao período medieval), a Vila Velha de Santa Cruz da Vilariça (vila medieval desertificada no final do século XIII e que está na génese do actual concelho de Torre de Moncorvo), o castro da Cigadonha (na freguesia de Carviçais), algumas necrópoles de sepulturas escavadas na rocha, datáveis do período medieval. Há ainda a salientar alguns monumentos nacionais e imóveis de interesse público, que interessava potenciar e articular no quadro desta rede: igreja tardo-românica de Santiago de Adeganha (século XIII-XIV?), a igreja matriz de Torre de Moncorvo (século XVI), a igreja da Misericórdia (século XVI), capela de Senhora da Teixeira, com notáveis pinturas a fresco no seu interior (século XVI), santuário de Santo Apolinário de Urros, etc.[4].
Esta rede local de núcleos museológicos poderia (e deveria) integrar a Rede Portuguesa de Museus e, à escala regional, a rede do Museu do Douro enquanto museu de território abrangente de todos os concelhos da região demarcada do chamado Vinho do Porto[5]. É de notar que Torre de Moncorvo se insere, embora em pequena extensão, na paisagem vinhateira duriense classificada como Património Mundial pela UNESCO.

Espaço identitário, “produto” cultural e  célula de investigação científica

Pretendia-se com este projecto aumentar exponencialmente o potencial turístico da região em causa, articulando-o com diversas rotas já constituídas ou a desenvolver (Rota do Vinho do Porto, Rota da Seda, Caminhos de Santiago), intensificando o agro-turismo, o turismo gastronómico, o artesanato, a hotelaria, comércio e serviços, procurando fixar pessoas, criando nichos de mercado, e, dessa forma, tentar minimizar o impacto da desertificação humana, o problema maior desta região do interior.
Enquanto função cultural – instrumento de comunicação – procura-se actuar em dois níveis: a) em relação ao forasteiro (termo talvez preferível ao de “turista”), pretende-se ajudá-lo a conhecer e a interpretar o território visitado, enriquecendo o seu conhecimento por comparação com outras realidades que conhece, e permitindo-lhe uma fruição mais completa e esclarecida sobre o objecto da sua visita; b) em relação à população autóctone (comunidade residente e aqueles que foram levados pela Diáspora), pretende-se conferir-lhes, pelo conhecimento alargado das realidades mais ou menos antigas do seu território, um maior sentido de identidade e de auto-estima, factores de educação e de cultura que lhes permitam uma tomada de consciência da sua origem e do seu lugar no mundo, bem como uma atitude mais positiva conducente a uma melhor cidadania, revendo-se no seu património e constituindo-se como seus principais defensores.
A emanação e sustentação do museu a partir da vontade das comunidades, como defendiam os teóricos dos ecomuseus, revelou-se aqui, como noutros locais, algo utópica. Todavia, esse desiderato não pode ser deixado de lado, procurando-se tanto quanto possível a sua concretização. Nesse sentido, destacamos o início de dois projectos de recolha de memórias dos antigos ferreiros e mineiros, envolvendo os principais actores desta história, através de inquéritos orais (com registo audiovisual). Esta informação, depois de tratada, poderá informar melhor o dispositivo narrativo do museu, ou funcionar de forma autónoma, como acervo do Centro de Documentação do mesmo, que de futuro poderá ficar acessível “on line” através da “Internet”. Este é um dos caminhos que cada vez mais se impõe a um museu deste tipo, hoje: o de funcionar como um instrumento de comunicação, um livro aberto sobre o território e uma janela aberta para o mundo, para lá das suas quatro paredes.


Por: Nelson Campos

(Co-autor dos projectos museológicos do MF&RM de 1995/96 e de 2002;

 colaborador do MF&RM desde 1995).

in: Trás-os-Montes e Alto douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

BIBLIOGRAFIA:

CAMPOS 2001 – Nelson Campos, “Museu do Ferro e da Região de Moncorvo – um museu em construção”, in revista Centros Históricos, ano II, 2ª. série, nº. 7, Abril/Junho 2001, pp. 18-19.
CAMPOS 2007 – Nelson Campos, “Museu do Ferro & da Região de Moncorvo”, in Revista 2 Pontos, nº. 6, Verão 2007, ed. Porto Editora, p. 52-54.
CAMPOS 2010 – Nelson Campos, “A odisseia do ferro de Moncorvo até à Ferrominas”, in Revista do Colégio Campos Monteiro, Outubro de 2010
CUSTÓDIO & BARROS 1983 – Jorge Custódio, Gabriel Monteiro de Barros, O ferro de Moncorvo e o seu aproveitamento através dos tempos. Ferrominas, 1984.
CUSTÓDIO & CAMPOS 2002 – Jorge Custódio; Nelson Campos, Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. Centro de Interpretação. Estudos. Catálogo. vol. 1, Torre de Moncorvo, 2002.
FERROMINAS s/d. – Ferrominas E.P., Museu do Ferro da Região de Moncorvo. Catálogo. Ed. Ferrominas, s/d [1983]
REBANDA e tal. 1996 – Nelson Rebanda, Miguel Rodrigues, Ana Mascarenhas, Museu do Ferro e da Região de Moncorvo. Introdução a um programa museológico. Trabalhos do Museu, 1, MF&RM, 1996.
RIVIÈRE 1993 – Georges-Henri Rivière, La Museología. Curso de Museología/Textos y testimonios. Akal, 1993 (ed. espanhola), p. 200.
SOEIRO 2005 – Teresa Soeiro, “Os museus na região demarcada do Douro em 2002”, in Douro – Estudos e Documentos, nº. 20, ed. GEHVID, 2005, pp. 295-306.

O autor
Nelson Campos
Apesar de ter nascido em Angola, as suas raízes familiares são totalmente transmontanas, distribuindo-se pelos concelhos de Freixo de Espada à Cinta e Mogadouro.
Reside em Torre de Moncorvo desde 1975, onde completou o ensino secundário. Licenciado em História (variante de Arqueologia), pela Faculdade de Letras do Porto, foi professor do Ensino Secundário em várias escolas de Trás-os-Montes e Alto Douro, tendo ingressado em 1990 no IPPC (depois IPPAR), sendo funcionário da Direcção Regional da Cultura do Norte. Integrou a equipa inicial do Museu do Douro, sob a coordenação do Professor Gaspar Martins Pereira, tendo sido posteriormente requisitado pelo município de Torre de Moncorvo e Associação de Municípios do Baixo Sabor, para colaborar em projectos culturais neste concelho, com particular destaque para o do Museu do Ferro. Iniciou o processo conducente à instalação deste Museu
em 1993, através da associação do Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo, de que foi fundador, com um grupo de colegas, em 1986, tendo sempre feito parte da direcção da mesma. É autor de alguns trabalhos no âmbito da arqueologia, história, etnografia, museologia e conservação do património cultural. Colaborou ainda num projecto de rádio local (ex-Roboredo, depois RTM) e possui colaboração dispersa na imprensa regional (normalmente sob pseudónimos).



[1] Artigo de H. de Varine, in Museum, 25 (4), 1973, p. 242 cit. in RIVIÈRE 1993, p. 200. 
[2] Sobre a história do ferro de Moncorvo, ver: CUSTÓDIO & BARROS 1983, vários artigos de J. Custódio in CUSTÓDIO & CAMPOS 2002, e CAMPOS 2010, entre outros.
[3]O projecto deste museu foi elaborado por Jorge Custódio, cf. catálogo do mesmo editado pela Ferrominas E.P. – ver FERROMINAS s/d.
[4] Basicamente esta ideia de Rede Museal Local foi explanada no artigo de J. Custódio e N. Campos, “O Museu do Ferro & da Região de Moncorvo: um museu de território?”, in CUSTÓDIO & CAMPOS 2002, pp. 20-41, sendo posteriormente objecto de um projecto de tese de mestrado de N.Campos, sob o tema: “O projecto MM/Museu de Moncorvo – uma proposta de rede museal local”.
[5] Ver sobre o Museu do Ferro e outros museus da região do Douro: SOEIRO 2005.

Sem comentários:

Enviar um comentário

As Bacantes

  As Bacantes eram as sacerdotisas que, na Grécia Antiga, celebravam os mistérios do Deus Baco, ou Dionísios. Esta tragédia, sobre a morte...