Evolução do conceito de Museu – do edifício
para o território
A instituição museal, desde a sua origem, nos primórdios do
coleccionismo, para além da sua intenção de ordenar e interpretar o mundo a
partir dos espécimes recolhidos, teve, à parte a missão de preservar e
conservar, uma outra, que seria o seu fim último, a qual era a da
comunicação/transmissão de um saber e/ou de uma estética, aos seus visitantes,
fossem eles de colecção privada ou, muito mais tarde, pública (sobretudo após a
Revolução Francesa). O objecto ganhou assim uma função semiótica, funcionando o
museu como um interface entre o coleccionador/investigador e o
público/visitante, usando-se, para isso, um discurso, uma narrativa, uma
linguagem. A começar pela fachada do edifício, passando pela apresentação
museográfica, acabando nos objectos, tudo emite uma mensagem e tudo é objecto
de uma “escolha” (mais ou menos criteriosa), feita por indivíduos mais ou menos
especialistas, o que, em última instância, não deixa de apresentar aquela carga
de subjectividade, denotação e conotação, inerentes a qualquer discurso
narrativo.
Já ao longo do século XX, assistimos a uma evolução do
conceito de museu, de instituição hierática, centrada num edifício mais ou
menos solene (o museu clássico), para formas de musealização centradas no
território, como foi o caso dos “ecomuseus” teorizados por G. Henri Rivière,
com base na ideia de “museus de ar livre” colhida das experiências dos parques
naturais. E é curioso que uma das experiências pioneiras (apesar de não se ter
revelado tão bem sucedida quanto se esperava), tivesse incidido sobre uma
comunidade urbana mineira, o projecto Creusot-Montceau-Les-Mines, inicialmente
designado por Museu do Homem e da Indústria. Este novo conceito de Museu,
procurava um forte vínculo com a comunidade, dela devendo emanar a própria
estrutura museológica. “O museu não tem visitantes, tem habitantes”, proclamava
Hugues de Varine, na década de 1970[1]
O caso de Moncorvo – centro mineiro
O caso que aqui apresentamos envolve igualmente um
território que teve um passado ligado à mineração, em maior ou menor escala.
Trata-se da área mineira da serra do Roborêdo, a maior jazida de minerais de
ferro da Europa (com predominância de hematites), calculada em mais de 670
milhões de toneladas. Esta serra, com a altitute máxima de 915 m , encontra-se no
concelho trasmontano de Torre de Moncorvo, entre os rios Sabor e Douro.
A exploração e transformação do minério de ferro de Torre
de Moncorvo está documentada, com segurança, desde o período romano (séc. I
d.C.), estendendo-se até ao final do séc. XVIII e, num caso, entrando ainda no
início do séc. XIX (ferraria de Chapa-Cunha, único exemplo local em terá sido
aplicada a técnica da forja catalã). Durante o século XIX esta região ficou à
margem da Revolução Industrial europeia, apenas se registando um interesse
pelas minas a partir do terceiro quartel desse século, embora os estudos
geológicos de campo só se verificassem na transição para o século XX, já por
conta dos empórios internacionais ligados ao ferro e ao aço, nomeadamente a
Schneider & Cª.. Entre 1930 e 1942, este consórcio, com outras empresas
sucedâneas promoveram actividades prospectivas que foram interrompidas pela 2ª.
Grande Guerra. Já no pós-guerra, em 1951, constituiu-se uma empresa portuguesa,
a Ferrominas Ldª., que iniciou a exploração de minérios em grande escala,
sobretudo com objectivo de exportação para mistura com minerais mais ricos, já
que o teor médio de fe do minério de
Moncorvo era baixo e contendo muitas impurezas. Esta é a fase que ainda perdura
bem na memória das pessoas locais, pois o período de laboração, embora sempre
em decréscimo a partir da década de 1950, haveria de chegar ainda a 1985,
gerando até grandes expectativas de relançamento das minas, no seu momento
final[2]. Data
deste período a criação de um pequeno museu de empresa, essencialmente dedicado
ao Ferro, localizado no bairro mineiro do Carvalhal, recolhendo material
diverso, desde uma colecção geológica, vestígios da época romana relacionados
com a actividade mineira, documentos medievais, fotografias e objectos
relacionados com a actividade extractiva do séc. XX[3].
Museu do Ferro – do bairro mineiro para a
sede do concelho
Com o encerramento da Ferrominas (1986-1992) e a passagem
das concessões e demais documentação para a Empresa de Desenvolvimento Mineiro
(EDM), com sede em Lisboa, o Museu do Ferro ficou praticamente inactivo, razão
pela qual foi decidida a sua trasladação para a sede do concelho, nos inícios
de 1995, através de um protocolo com a Câmara Municipal de Torre de Moncorvo
que, por sua vez, estabeleceu uma parceria com uma associação local de estudo e
defesa do património, denominada Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo
(PARM), para efeitos de gestão do novo museu, intitulado agora Museu do Ferro
& da Região de Moncorvo. O museu ficou instalado num antigo solar de traça
seiscentista, na imediação da igreja matriz (do século XVI) que é monumento
nacional.
Desde 1995
a 2002 foram implementadas várias candidaturas a fundos
comunitários que tornaram possível a recuperação do edifício e de um terreno
anexo, que foi ajardinado, e onde se construiu um auditório para exposições
temporárias e outros eventos. Além do núcleo temático dedicado ao Ferro, havia
(e há) a ideia de se criar um núcleo didáctico que mostrasse outros aspectos da
arqueologia e da história da região. Esta sala ainda não se encontra organizada,
mas em contrapartida foi possível albergar na área de reservas várias peças
arqueológicas que andavam dispersas pelo concelho, assim como o espólio resultante
de prospecções e escavações realizadas no concelho.
Propostas para o futuro
Conseguida que foi esta plataforma de apoio, tipo Centro
Interpretativo da região, era intenção dos responsáveis da associação, levar
este programa museológico mais longe, estendendo-o sobre o território e
reforçando a componente do Ferro, no âmbito de um Parque Mineiro, envolvendo o
bairro da Ferrominas, convertido em aldeamento turístico, a zona de extracção a
céu aberto (Alto da Carvalhosa) e as galerias (Cotovia, cabeço da Mua,
Carvalhosa), bem como as estações de caminho de ferro de Torre de Moncorvo e do
Carvalhal (da antiga linha do Sabor).
Esta rede museal local passaria ainda por outros núcleos
museológicos a criar ou em fase de implementação, por parte do município de
Torre de Moncorvo, como por exemplo: o núcleo museológico dedicado ao antigo
castelo medieval, a instalar nas ruínas do referido castelo, em pleno centro
histórico de Torre de Moncorvo; o núcleo de Arte Sacra, na igreja da
Misericórdia desta vila (em fase de concretização); uma forja de ferreiro e
núcleo das Artes Cerâmicas, na aldeia de Felgar (em fase estudo); núcleo da
Cera, num antigo lagar comunitário da cera, na aldeia de Felgueiras (em estudo).
Poderiam ainda ficar associados à rede projectos museológicos de iniciativa
privada, como por exemplo o Museu do Vinho da Quinta das Aveleiras (existente
desde 1999) ou o Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior (inaugurado
em 2009).
Igualmente nesta rede poderiam ser integrados alguns sítios
arqueológicos, após o seu estudo, recuperação e valorização, como por exemplo o
sítio arqueológico do Baldoeiro (com vestígios da Pré-história ao período
medieval), a Vila Velha de Santa Cruz da Vilariça (vila medieval desertificada
no final do século XIII e que está na génese do actual concelho de Torre de
Moncorvo), o castro da Cigadonha (na freguesia de Carviçais), algumas
necrópoles de sepulturas escavadas na rocha, datáveis do período medieval. Há
ainda a salientar alguns monumentos nacionais e imóveis de interesse público,
que interessava potenciar e articular no quadro desta rede: igreja
tardo-românica de Santiago de Adeganha (século XIII-XIV?), a igreja matriz de
Torre de Moncorvo (século XVI), a igreja da Misericórdia (século XVI), capela
de Senhora da Teixeira, com notáveis pinturas a fresco no seu interior (século
XVI), santuário de Santo Apolinário de Urros, etc.[4].
Esta rede local de núcleos museológicos poderia (e deveria)
integrar a Rede Portuguesa de Museus e, à escala regional, a rede do Museu do
Douro enquanto museu de território abrangente de todos os concelhos da região
demarcada do chamado Vinho do Porto[5].
É de notar que Torre de Moncorvo se insere, embora em pequena extensão, na paisagem
vinhateira duriense classificada como Património Mundial pela UNESCO.
Espaço identitário, “produto” cultural e célula de investigação científica
Pretendia-se com este projecto aumentar exponencialmente o
potencial turístico da região em causa, articulando-o com diversas rotas já
constituídas ou a desenvolver (Rota do Vinho do Porto, Rota da Seda, Caminhos
de Santiago), intensificando o agro-turismo, o turismo gastronómico, o
artesanato, a hotelaria, comércio e serviços, procurando fixar pessoas, criando
nichos de mercado, e, dessa forma, tentar minimizar o impacto da desertificação
humana, o problema maior desta região do interior.
Enquanto função cultural – instrumento de comunicação –
procura-se actuar em dois níveis: a) em relação ao forasteiro (termo talvez
preferível ao de “turista”), pretende-se ajudá-lo a conhecer e a interpretar o
território visitado, enriquecendo o seu conhecimento por comparação com outras
realidades que conhece, e permitindo-lhe uma fruição mais completa e
esclarecida sobre o objecto da sua visita; b) em relação à população autóctone
(comunidade residente e aqueles que foram levados pela Diáspora), pretende-se
conferir-lhes, pelo conhecimento alargado das realidades mais ou menos antigas
do seu território, um maior sentido de identidade e de auto-estima, factores de
educação e de cultura que lhes permitam uma tomada de consciência da sua origem
e do seu lugar no mundo, bem como uma atitude mais positiva conducente a uma
melhor cidadania, revendo-se no seu património e constituindo-se como seus
principais defensores.
A emanação e sustentação do museu a partir da vontade das
comunidades, como defendiam os teóricos dos ecomuseus, revelou-se aqui, como
noutros locais, algo utópica. Todavia, esse desiderato não pode ser deixado de
lado, procurando-se tanto quanto possível a sua concretização. Nesse sentido,
destacamos o início de dois projectos de recolha de memórias dos antigos ferreiros
e mineiros, envolvendo os principais actores desta história, através de
inquéritos orais (com registo audiovisual). Esta informação, depois de tratada,
poderá informar melhor o dispositivo narrativo do museu, ou funcionar de forma
autónoma, como acervo do Centro de Documentação do mesmo, que de futuro poderá
ficar acessível “on line” através da “Internet”. Este é um dos caminhos que
cada vez mais se impõe a um museu deste tipo, hoje: o de funcionar como um
instrumento de comunicação, um livro aberto sobre o território e uma janela
aberta para o mundo, para lá das suas quatro paredes.
Por: Nelson Campos
(Co-autor dos projectos museológicos do MF&RM de 1995/96 e
de 2002;
colaborador do
MF&RM desde 1995).
in: Trás-os-Montes e Alto douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
BIBLIOGRAFIA:
CAMPOS
2001 – Nelson Campos, “Museu do Ferro e da Região de Moncorvo – um museu em
construção”, in revista Centros
Históricos, ano II, 2ª. série, nº. 7, Abril/Junho 2001, pp. 18-19.
CAMPOS
2007 – Nelson Campos, “Museu do Ferro & da Região de Moncorvo”, in Revista 2 Pontos, nº. 6, Verão 2007, ed.
Porto Editora, p. 52-54.
CAMPOS
2010 – Nelson Campos, “A odisseia do ferro de Moncorvo até à Ferrominas”, in Revista do Colégio Campos Monteiro,
Outubro de 2010
CUSTÓDIO
& BARROS 1983 – Jorge Custódio, Gabriel Monteiro de Barros, O ferro de Moncorvo e o seu aproveitamento
através dos tempos. Ferrominas, 1984.
CUSTÓDIO
& CAMPOS 2002 – Jorge Custódio; Nelson Campos, Museu do Ferro & da Região de Moncorvo. Centro de Interpretação.
Estudos. Catálogo. vol. 1, Torre de Moncorvo, 2002.
FERROMINAS
s/d. – Ferrominas E.P., Museu do Ferro da
Região de Moncorvo. Catálogo. Ed. Ferrominas, s/d [1983]
REBANDA e tal. 1996 – Nelson Rebanda, Miguel
Rodrigues, Ana Mascarenhas, Museu do Ferro e da Região de Moncorvo. Introdução
a um programa museológico. Trabalhos do Museu,
1, MF&RM, 1996.
RIVIÈRE
1993 – Georges-Henri Rivière, La
Museología. Curso
de Museología/Textos y testimonios. Akal, 1993 (ed. espanhola), p. 200.
SOEIRO 2005 – Teresa Soeiro, “Os museus na
região demarcada do Douro em 2002” ,
in Douro – Estudos e Documentos, nº.
20, ed. GEHVID, 2005, pp. 295-306.
O autor
Apesar
de ter nascido em Angola, as suas raízes familiares são totalmente
transmontanas, distribuindo-se pelos concelhos de Freixo de Espada à Cinta e
Mogadouro.
Reside
em Torre de Moncorvo desde 1975, onde completou o ensino secundário. Licenciado
em História (variante de Arqueologia), pela Faculdade de Letras do Porto, foi
professor do Ensino Secundário em várias escolas de Trás-os-Montes e Alto
Douro, tendo ingressado em 1990 no IPPC (depois IPPAR), sendo funcionário da
Direcção Regional da Cultura do Norte. Integrou a equipa inicial do Museu do
Douro, sob a coordenação do Professor Gaspar Martins Pereira, tendo sido
posteriormente requisitado pelo município de Torre de Moncorvo e Associação de
Municípios do Baixo Sabor, para colaborar em projectos culturais neste
concelho, com particular destaque para o do Museu do Ferro. Iniciou o processo
conducente à instalação deste Museu
em
1993, através da associação do Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo, de
que foi fundador, com um grupo de colegas, em 1986, tendo sempre feito parte da
direcção da mesma. É autor de alguns trabalhos no âmbito da arqueologia,
história, etnografia, museologia e conservação do património cultural.
Colaborou ainda num projecto de rádio local (ex-Roboredo, depois RTM) e possui colaboração
dispersa na imprensa regional (normalmente sob pseudónimos).
[1] Artigo de H. de Varine, in Museum, 25 (4), 1973, p. 242 cit. in
RIVIÈRE 1993, p. 200.
[2]
Sobre a história do ferro de Moncorvo, ver: CUSTÓDIO & BARROS 1983, vários
artigos de J. Custódio in CUSTÓDIO & CAMPOS 2002, e CAMPOS 2010, entre
outros.
[3]O
projecto deste museu foi elaborado por Jorge Custódio, cf. catálogo do mesmo
editado pela Ferrominas E.P. – ver FERROMINAS s/d.
[4]
Basicamente esta ideia de Rede Museal Local foi explanada no artigo de J.
Custódio e N. Campos, “O Museu do Ferro & da Região de Moncorvo: um museu
de território?”, in CUSTÓDIO & CAMPOS 2002, pp. 20-41, sendo posteriormente
objecto de um projecto de tese de mestrado de N.Campos, sob o tema: “O projecto
MM/Museu de Moncorvo – uma proposta de rede museal local”.
[5]
Ver sobre o Museu do Ferro e outros museus da região do Douro: SOEIRO 2005.
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