sexta-feira, 27 de abril de 2012

Carlos D'Abreu - Das coisas da Loisa - uma aldeia empoleirada no Doiro

In Memoriam Francisco Manuel Machado


Carlos D'Abreu
 Desenganem-se aqueles que pensam que aqui irão encontrar alguma tentativa de dissertação sobre a forma mais correcta de escrever ou pronunciar qualquer um dos topónimos. Ou, no caso dos linguistas, se julgam que nos apanharão a meter a seitoira em pão alheio, pois um loiseiro não cai em esparrelas. Loisa ou Lousa, é significado de ardósia, de laje, de pedra que cobre uma sepultura, ou a pedra em que os mais antigos aprenderam a escrever, ou ainda armadilha para pássaros, bem o sabemos, pois afirmam-no os dicionaristas. E Doiro ou Douro, sabido é.
Mas não é esse o nosso projecto, apenas tentaremos falar-vos do país dos loiseiros, ou lousenses transmontano-durienses. Sim, porque este topónimo, no lado republicano da Península corresponde a três unidades administrativas, não obstante qualquer um dos gentílicos nos servir, sendo no entanto o segundo necessariamente mais largo, para nos distinguir dos outros (lousenses). Razão pela qual, até à criação do código postal, o do meio caminho andado, a nossa correspondência viajava no Correio do Doiro. E viajava muito bem. Hoje uma carta só para atravessar o Rio nesta zona, por estrada, demora uma semana.
Conheceis vós, transmontanos-durienses, a Loisa, uma das muitas freguesias da nossa província e cujo casario costumais ver lá no alto duma serra?
Então vinde daí, pois guiar-vos-ei numa visita e verificareis que não perdestes o vosso tempo.
            A Loisa é antes de mais Paisagem e Memória. Não possui monumentos edificados grandiosos. É no entanto uma freguesia charneira, por fazer a ponte a vários níveis, senão vejamos.
            Geomorfologicamente, encontra-se numa zona de transição geológica, porque integra o complexo xisto-grauváquico do Douro (constituído por xistos e granitos). Temos piçarra até à zona da Parada e, daí para cima, pedra (assim designamos os granitóides). É precisamente até essa altitude que chega a zona do “benefício” vinícola, pois pertencemos à Região Demarcada do Doiro, apesar de produzirmos muitas e boas uvas e concomitantemente bom vinho, em cotas superiores.
Fitologicamente e porque o seu território se reparte entre a Terra Quente e a Terra Fria Transmontanas (nesta localiza-se a zona urbana), é também uma zona de transição, pois aqui podemos encontrar uma consociação florística muito interessante, como castinceiras (castanea sativa) e carrapotos (quercus suber) a competirem pelo espaço, quando uma é arbórea de clima continental e a outra mediterrânea.
Orientada para Nascente, é todavia uma aldeia fria, com Invernos ásperos e ventosos, podendo dizer-vos que as suas temperaturas durante a estação fria andam pelas da Guarda e Bragança, devendo-se isso à sua altitude. Em contrapartida no Verão, as noites são suaves, onde dá gosto dormir, ao contrário da vila a que pertencemos. Quantas vezes no Inverno, quando aqui temos sançano -assim pronunciamos a palavra sincelo e outras do mesmo tipo (como fano para feno)- e codo, e por conseguinte não podemos trabalhar, escapamo-nos para a Ribeira, onde as geadas são raras.
            É uma freguesia ribeirinha do Doiro e administrativamente pertence ao concelho da Torre de Moncorvo, sendo uma das actuais 17 freguesias, localizando-se no seu extremo SO, tem cerca de 35km2 de área (o que corresponde a cerca de 7% do total do concelho, sendo a sétima em superfície), mas também não é por aí que se avaliam as terras e as suas gentes, pois grande é o Marão e não dá pão. Situa-se a uma altitude entre os pouco mais de 100m (nas margens do Doiro) e os 850m (no sítio do moinho eólico da Portela).
            No que respeita ao concelho da Torre de Moncorvo, limita com as freguesias da Cabeça Boa e do Castedo e até há pouco mais de 100 anos também com a da Cabeça de Moiro, entretanto integrada na da Cabeça Boa. Relativamente ao concelho da Carrazeda de Ansiães, parte com a de Vilarinho da Castanheira e também há coisa de um século, com a do Pinhal do Doiro, entretanto anexada por aquela. Encosta-se às das Mós do Doiro e Santo Amaro de Vale de Boi, ambas do concelho de Vila Nova de Foz Côa. E quase toca a freguesia do Moirão, do concelho de Vila Flor, o mesmo acontecendo com o território do concelho de S. João da Pesqueira.
Daqui se avistam um ror de sedes de município, sendo as mais próximas Vila Flor, Foz Côa, Moncorvo, Alfândega, Pesqueira, Figueira, Mogadouro, Mêda e outras, assim como algumas da província de Salamanca. Também se divisam os castelos de Ansiães, de Numão, de Castelo Rodrigo e percebem-se vários outros, como o de Trancoso por exemplo. Avistamos igualmente a Serra da Estrela, sobretudo quando se veste de branco.
            É a mais recente aquisição do concelho de Moncorvo, pois só lhe pertence desde 1.1.1854, por ter sido (pelo menos) desde 1218 do concelho do Vilarinho, suprimido pelas reformas empreendidas pelo regime liberal, a 6.11.1836. Desde esta data e até 27.9.1837 deixou este concelho de existir, sendo o seu território repartido pelos concelhos de Vila Flor e Carrazeda, ficando a Loisa integrada neste último. Foi no entanto restaurado, subsistindo nos 16 anos seguintes, sem contudo lograr readquirir a estabilidade necessária para se reforçar e sobreviver no futuro, sendo definitivamente extinto em 31.12.1853. Nesta segunda extinção, as freguesias do Castedo e da Loisa foram incorporadas na municipalidade da Torre de Moncorvo.
            Aliás, os loiseiros ainda hoje se relacionam mais com a Carrazeda do que com Moncorvo. A esta vila vão sobretudo pagar os impostos. Para além de mais próxima e ter melhor caminho, é com a Carrazeda que mercanciam, depois do Vilarinho ter perdido a feira. Ainda hoje os poucos alunos que nela existem, parte deles aí estudam. Tudo como que recusando abandonar, no infortúnio, a sua antiga vila.
            Do ponto de vista humano, afianço-vos que está documentado, através de vários arqueosítios, ininterruptamente o seu povoamento desde épocas Pré-históricas.
            Estamos em crer que o povo se localizou no sítio da Parada (macro-topónimo que dista uns 3,5km em direcção ao Doiro) e se terá deslocado para riba atraído pelo convento Trinitário, no século XV, de que mais adiante também vos falarei. Conta ainda hoje a lenda que esse lugar se despovoou devido às formigas que comiam os olhos às criancinhas. Ora, como sabeis, esta é uma lenda comum a muitos outros sítios e utilizada para justificar os lugares-mortos.
            Para além da etimologia, pois Parada significa local de paragem, logo de passagem (entre o Doiro e o planalto), existem de facto vários testemunhos materiais da presença humana nesse local. Há vestígios arqueológicos que atestam ter sido lugar habitado. Aliás, aí se encontra a capela da Parada (dedicada à Senhora da Conceição), edifício interessante a vários níveis e que data pelo menos de finais do século XV, isto a avaliar pela estratigrafia murária e decoração arquitectónica interior. Nessa zona, no sítio da Garcia (micro-topónimo), há vestígios de uma villae, isto é, de um conjunto habitacional do período da Romanização. Aí se veem por exemplo, fragmentos de terra sigillata, ou seja, de loiça fina romana, loiça importada... A sua localização acima da meia-encosta, concede a esse sítio um clima muito suave de Inverno que nada tem a ver com aquele que sentimos em cima, na aldeia.
            Entremos na capela de Santo António, localizada no centro nevrálgico da aldeia, no largo com o mesmo nome, onde desde há séculos se localizam os vários poderes que têm governado a freguesia. O próprio alpendre da capela, designado de cabido, serviu até há poucos anos, com a colaboração da sua sineta, para o chamamento dos “homens bons”, digamos assim. Aqui se faziam as arrematações dos pastos, por parte da Comissão dos Proprietários; reunia a Comissão Fabriqueira; se definia o calendário para o início da colheita da azeitona; se decidia quando se devia mandar vir a Guarda, para meter na linha os rebusqueiros e não permitir os proprietários iniciar a campanha antes do dia acordado (geralmente numa segunda-feira pelos dias 8 a 12 de Dezembro); se determinavam os trabalhos colectivos, como o conserto de caminhos e de fontes; para além da arrematação do ramo do dia de Reis, pois no centro do pavimento existe um orifício para espetar e manter hirto o dito ramo com as ofertas.
            Se vierem no dia 6 de um qualquer mês, repararão à entrada do Povo que é dia de feira. Curiosamente, continua a subsistir na Loisa uma feira mensal, apesar do despovoamento das zonas rurais. Serve também algumas das aldeias mais próximas. Se o dia 6 for num domingo, encontrá-la-ão muito desfalcada, devido à “fuga” de alguns feirantes para o mercadillo portugués, que recentemente se começou a realizar nos primeiros domingos de cada mês em Trabanca, município raiano da província de Salamanca e sede do Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Douro – Duero, integrado pela maioria das freguesias da região. E também pela nossa, não sabendo ainda ao certo em que resultará essa sociedade transfronteiriça, por ser novidade jurídica.
Avancemos para o Cabo da Aldeia. E subamos ao miradoiro de Santa Bárbara (a padroeira dos mineiros e artilheiros), ao qual dá nome uma pequena capela com a mesma invocação, capela essa que contém no seu interior (na zona do altar), uma interessante pintura mural dedicada a Santiago mata-mouros, o que no nosso (humilde) entender, não deixa de revelar alguma curiosidade, pois parece-nos ser algo rara esta iconografia no nosso território, talvez por ser padroeiro da Espanha. Lamentavelmente esta pintura foi muito mutilada num dos “restauros” da dita capela.
No seu interior, podemos ainda ver ainda uma imagem a três dimensões da Senhora dos Altos Céus, que até há poucos anos era o único exemplar de imagem de roca na freguesia e talvez do concelho. Lamentavelmente, por ignorância, nos tais célebres “restauros” (porque de funestas consequências), mais um elemento do nosso património artístico-religioso móvel foi maltratado, para não dizer destruído, porquanto lhe completaram o corpo. Para os menos versados neste tipo de terminologia da História d’Arte, diremos que uma imagem de roca consiste numa escultura religiosa, cuja parte interior é formada por uma armação em madeira, ocultada pela indumentária, tendo apenas esculpido o rosto e as mãos, sendo certo que este processo não só reduz o ónus do fabrico (e de aquisição) mas também a torna mais leve para ser transportada no andor das procissões.
            O culto à Senhora dos Altos Céus é na Loisa anterior a 1474, ano da fundação do convento Trinitário, porquanto existia uma imagem dessa invocação (de grande devoção popular segundo as crónicas), numa ermida onde se instalou aquele que viria a fundar o referido convento, ermida essa que tanto poderia localizar-se no sítio onde mais tarde se edificou o cenóbio, por ser esse lugar eminente e onde faz sentido venerar-se tal divindade, ou ser a mesma que hoje tem a designação de Santa Bárbara, porque próximas, havendo apenas uma (pequena) depressão entre ambos os cabeços. Com a fundação do convento, os frades trinos, aproveitando a imagem existente, alteraram-lhe a invocação para Senhora dos Remédios -a sua patrona-, regressando somente a imagem de roca á invocação anterior por finais do século XVIII, altura em que terá sido adquirida a actual escultura, pelos mesmos trinitários.
            E neste miradoiro de Santa Bárbara, conto-vos a história das 7 irmãs, isto é, que desta capela se avistam outras 6 dedicadas à mesma Senhora, ou seja, 7 entre si. Assim contava o povo. Na verdade só há poucos anos conseguimos confirmar a veracidade do dito. Contávamos a das Mós (do Doiro), a do Felgar, a de Carviçais, a de Ligares. E faltavam-nos 2. Entretanto, numa visita a Castelo Melhor, por lá encontrámos outra e avistámos a da Loisa. Mais tarde, numa ida a Santo André das Arribas, por Almofala -já lá havíamos estado mas por Sobradillo-, passámos por uma outra. E assim completámos e confirmámos o conto, ou a conta.
            É tradição entre os loiseiros -olvidávamo-nos de vos dizer que os povos d’Além Doiro assim nos continuam a chamar-, irmos passar a noite de véspera do dia de S. Lourenço, que é o orago (no S. Lourenço vai à vinha e enche o lenço), ao Doiro, onde as famílias e amigos, nos seus prédios, convivem.
            Dizemos passar a noite e não dormir, porque para além de ser festa, os zanzinos da borda-d’auga não deixam sossegar ninguém. Pela manhã bem cedo, antes do nascer do sol, banhávamo-nos no Rio, pois a essa hora a auga ainda estava “benzida” (a escuridão protegia a pudicícia). Como naquela descrição de uma loiseira, que um dia chegando a casa, contou que vira um homem descalço, encoiracho, encarrapato e com o parracho no Doiro. Hoje mercê de melhores caminhos e transportes, dum modo geral, vêm dormir ao Povo. Seremos dos poucos que continuamos a passar por lá a noite, mau grado os moscardos, aproveitando para uma pescaria.
Sobre o Rio muito vos poderia dizer. Era estreito e corria, por vezes no Inverno com curso muito arrebatado, possuía extensos areais, atapetados com grameiros. Debaixo das pedras roladas capturávamos enguias. No Verão, algumas vezes com os toldes da azeitona, recolhíamos os barbos e as bogas que ficavam retidos nas poças. A veiga era formosa, cultivada com preciosas fruteiras, destacando-se nelas as laranjeiras e outros citrinos. Tinha açudes que alimentavam as azenhas e as pesqueiras, uma vez que a Loisa não tem ribeiros e consequentemente não possui moinhos de rodízio, excepto vestígios de três simples moendas em cascata no sítio do Pôio, dos quais nunca ouvíramos falar (talvez por ser uma linha d’auga tão fraca que nem em todos os Invernos corre) até ao dia em que casualmente com eles deparámos numa das caminhadas pelo termo.
Mas por finais da década de 1970, a construção duma barragem no sítio do cachão da Valeira, roubou-nos a auga onde enchíamos os cântaros, para beber e cozinhar, uma vez que a auga corrente não mata a gente e no Estio as fontes no vale são muito raras. Roubou-nos as terras de cultivo, aquelas que nos davam os mimos, mais cedo que em qualquer outro lugar. Roubou-nos o prazer dos banhos e a escola de natação. Roubou-nos a variada fauna piscícola autóctone (para as caldeiradas, para as migas, para a grelha e para a sartã), destacando-se nela o sôlho-rei (ou esturjão), aquele que enquanto dormia roncava, havendo exemplares que deitavam para cima de 2 arrobas.
Roubou-nos o sonho, expropriou-nos a alma. Morreu com as náiades uma parte de nós. A auga deixou de dormir durante a noite e entrou em letargia permanente. Sim, sabeis que a auga também dorme? Pois os mais antigos contavam-nos, quando pernoitávamos nas margens do Doiro-vivo, que a auga também dorme e, de facto, por vezes deixávamos de ouvir o seu murmúrio, ou porque o cansaço nos vencesse, ou devido a qualquer fenómeno natural. E quando a auga dorme é perigosa a sua ingestão, razão pela qual, em casa, nos recomendavam que indujássemos o cântaro antes de beber, para a despertar.
            Ao Doiro a ligação era umbilical. Era a via que nos aproximou durante milénios ao Mundo. Por ela ainda nos inícios da década de 1960 desceram os últimos rabelos carregados de vinho, de uvas produzidas e vinificadas (sublinhamos vinificadas) nestas encostas, por onde ainda hoje se podem ver vestígios dos lagares.
            Cruzávamos esse Doiro através de duas barcas de passagem. A do Freixo e a do Saião. Aquela, mais antiga, a Barca do Concelho, do Vilarinho, claro está, subsistiu até ao nosso tempo e, na qual, muitas vezes atravessámos para tomar o comboio, ou regressando no comboio. O sítio da Barca, era o nosso porto-destino, de chegada e de partida, uma porta de entrada e de saída. Aí, usando as mãos como funil, berrávamos, “ó barqueiiiiiiro”, independentemente da hora do dia ou da noite. Falar desta barca emociona-nos, não só por ela já não existir mas sobretudo por nos trazer à lembrança aqueles que já partiram numa outra barca, e que nos acompanhavam da aldeia até lá, para se despedirem, ou daqui se deslocavam, para lá nos esperar. Até para ir à vila, imaginem, nela atravessávamos, para tomar o comboio, ou os comboios, uma vez que no Pocinho seguíamos pela Linha do Sabor, que também à História já passou, apesar de bem falta fazer à região.
            A outra barca era no Saião, lugarejo de pescadores, vigiado pelos antigos povoados pré-castrejos do Castelejo e do Castelo Velho (do Meão), um de cada lado. Lugarejo que a albufeira também submergiu.
As barcas cumpriram com dignidade a função de estreitar o rio aproximando as margens e, através delas, o Doiro nunca aqui constituiu obstáculo ou fronteira, pelo contrário, sempre foi elo de união. Eram as barcas que nos levavam às feiras de Foz Côa e do Freixo (de Numão, a comprar os recos), e às festas das Mós ou Santo Amaro. E que traziam até nós esses vizinhos. Nessas idas e vindas, alguns trocavam de terra, por encontrarem o rapaz (ou a rapariga) dos seus encantos. O pai do conhecido Abade Tavares era de Santo Amaro. Uma bisavó nossa era das Mós. Da Touça provinham os telheiros que sazonalmente aqui vinham fazer a telha nos fornos da Saíça e que durante gerações, alguns dos seus filhos por cá foram paridos.

in: Trás-os-Montes e Alto douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

(Continua)

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