quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Estratégias de Alianças Matrimoniais


«Nenhum cientista vai ao encontro da realidade que quer explicar sem “informação”, sem formação: é […] uma ideia falsa a de acreditar que a observação é a fonte da descoberta. Não se descobre senão aquilo que se estava pronto intelectualmente para descobrir.»

            Michele Miaille, Introdução Crítica ao Direito, Editorial Estampa, 2005, p. 30.


Respondendo ao convite que nos foi endereçado pelo Armando Palavras para escrever um artigo para Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de Ciência e Cultura, aqui deixamos algumas reflexões sobre um tema que nos apaixona. Infelizmente, a distância que nos separa de Lagoaça e o curto intervalo de tempo que nos concederam não nos permitiram um trabalho de campo sólido que sustentasse ou infirmasse as considerações subsequentes. Apesar destas contrariedades, aventuramo-nos a uma viagem pelos caminhos das antigas alianças matrimoniais, baseada no conhecimento empírico da freguesia e na fragilidade da nossa memória.

Casamento endogâmico e exogâmico em Lagoaça

   Em Lagoaça, tal como nas restantes freguesias do concelho de Freixo de Espada à Cinta, não há uma regra obrigatória de casamento no seio do próprio grupo territorial. Aparentemente, os naturais residentes, de ambos os sexos, sempre tiveram liberdade para escolher, dentro ou fora da aldeia, a pessoa do sexo oposto com quem pretendiam casar.

   Na realidade, particularmente no tempo dos nossos avôs e dos nossos pais, ou seja, desde o princípio do século XX até mais ou menos a década de 60 do mesmo século, esta possibilidade agâmica estava muitíssimo condicionada pela situação geográfica de relativo isolamento da aldeia – os meios de transporte públicos e privados eram escassos, tal como os recursos económicos de uma parte significativa da população, o que restringia os contactos com o exterior, que ficavam quase confinados às aldeias vizinhas de Fornos e de Bruçó – e pela pressão social exercida pelas famílias. Na prática, a endogamia territorial vigorava (e de certo modo ainda tem raízes no presente), como regra geral, havendo poucos casos, antes de 1970, de casamentos exogâmicos. Este tipo de casamentos aumentou significativamente a partir de 1970 e, em especial, a partir das décadas seguintes. As razões que levaram à proliferação dos casamentos exogâmicos prendem-se, em grande parte, com a generalização dos transportes públicos e privados, pois eles vieram facilitar os contactos com o mundo exterior à aldeia, e as mudanças provocadas pela oferta de novos empregos que originaram um fluxo migratório, sobretudo para as zonas litorais do país.

   Se tivermos também em conta que a situação económica de muitas famílias melhorou significativamente, o que permitiu aos seus filhos prosseguirem estudos médios e superiores (neste caso, sempre longe de Lagoaça), encontramos aqui mais um elemento susceptível de enfraquecer o casamento endogâmico. De facto, os jovens e as jovens naturais da aldeia que fizeram estudos médios ou superiores, tanto no passado como na actualidade, casaram, na maioria dos casos, com não naturais e residem fora da aldeia. Aqueles e aquelas que no passado mais recuado não frequentaram a escola ou ficaram com as habilitações literárias mínimas, casaram, regra geral, com naturais (muitos dos que se dedicaram/dedicam à agricultura ou trabalharam nos “caminhos de ferro”, e alguns que se dedicaram a negócios, residem na aldeia; os que se empregaram nas forças militares e militarizadas, em fábricas e na administração pública, regra geral, residem fora de Lagoaça; contudo, é de assinalar alguns casos recentes de reformados que regressaram à terra).



   Segundo o censo de 2001, Lagoaça tinha 491 residentes (238 homens e 253 mulheres). É muito provável que hoje tenha menos de 400.



CENSO DE 2001
População residente
Homens
Mulheres
238
253



   Destes 400 (ou menos) residentes, nem todos são naturais de Lagoaça. A maioria dos residentes casados não naturais da terra é originária das aldeias mais próximas, tanto do concelho como dos concelhos adjacentes. Conforme pudemos apurar, ainda que de forma não exaustiva, 10 deles (7 homens e 3 mulheres) são naturais da aldeia vizinha de Fornos.



População casada residente natural de Fornos[1]
Homens
Mulheres
7
3





   A posição geográfica de Lagoaça, a estrutura familiar e social da comunidade, as questões do património tiveram e, apesar de substancialmente mais circunscritas, têm ainda implicações na estratégia de alianças matrimoniais tanto dentro como fora da aldeia.

   Os casamentos entre naturais residentes na aldeia enquadram-se, regra geral, no interior da mesma hierarquia social e em níveis económicos e culturais equivalentes.

   Os naturais residentes em Lagoaça casados com não naturais da aldeia de Fornos têm, em regra, uma posição social e económica superior ou ligeiramente superior.

   Os homens e as mulheres (poucas) de Lagoaça casados e residentes na aldeia vizinha de Fornos têm menos bens económicos (essencialmente terras) do que estes.

   Se compararmos o número de homens e de mulheres naturais de Fornos, casados em Lagoaça e aqui residentes, verificamos que a maioria das mulheres da aldeia conservou a residência na terra, o que evidencia, regra geral, um maior desafogo económico destas em relação aos seus cônjuges. Podemos assim afirmar que o elemento determinante da residência está focalizado na quantidade e na qualidade das terras herdadas e/ou na possessão de habitação própria.

   Parece-nos pois incontestável que os naturais da aldeia escolheram aqui residir ou residir em Fornos pelo facto de possuírem, respectivamente, mais ou menos terras de qualidade (hortas, terras de cereais e frutícolas bem localizadas), mais ou menos capitais activos e passivos e/ou habitação própria ou de renda baixa.

   Os naturais da aldeia (homens e mulheres) só casaram com naturais de Fornos, regra geral, nos seguintes casos:



1.      Não encontraram em Lagoaça homem ou mulher disponíveis com equivalente situação económica;

2.      Não encontraram na aldeia homem ou mulher disponíveis com semelhante estatuto sociocultural.

Vítor Fernando Barros


 in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)


O Autor                                             
Vítor Fernando Barros, filho de Adérito Barros (lagoaceiro) e de Adosinda Felgueiras (forneira), nasceu ocasionalmente no Porto. Aos 5 anos de idade frequentou a pré-primária da "professora" Branquinha, em Lagoaça. Viveu cerca de 15 anos em Carviçais onde frequentou o Colégio Nossa Senhora de Fátima. Concluiu o 3.º ciclo na Escola Secundária de Miranda do Douro e o ensino secundário na Escola Secundária de Torre de Moncorvo. Com estudos em Direito e em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, exerce a profissão docente na Escola Mouzinho da Silveira, na Baixa da Banheira (Moita) - onde reside -, leccionando a disciplina de Língua Portuguesa. É sócio da Cooperativa dos Criativos e Produtores de Trás-os-Montes e Alto Douro e da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Lisboa.É dirigente do S.P.G.L. (Sindicato de Professores da Grande Lisboa) e membro da Assembleia Municipal da Moita pelo Bloco de Esquerda. Fez parte do Conselho Editorial do quinzenário do distrito de Setúbal “O Rio”, onde escreveu mais de 150 artigos. Publicou, entre outras, as seguintes obras: Uma aldeia transmontana: morfologia social de Fornos, Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro, Dicionário de Falares das Beiras, Dicionário de Falares do Alentejo (em co-autoria). Desenvolveu dois trabalhos de campo intitulados Estudo fonético do concelho de Freixo de Espada à Cinta [este trabalho pode ser consultado no sítio http://lagoaca.groups.live.com/?authkey=uqJSlPfVRho$] e Retrato dos Professores da Escola D. João I (Baixa da Banheira). A sua última obra, Lições de Gramática de Português, encontra-se já na tipografia e será dada a lume antes do início do novo ano escolar.

[1] O número poderá ser um pouco superior, pois não pudemos apurá-lo in loco.

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