sábado, 3 de junho de 2017

O Lobito e a Lisnave


J.RENTES de CARVALHO
É brincadeira, maldade inocente, mas abusamos porque dá sempre resultado: há ocasiões em que ainda não se disseram as três sílabas do nome e já ele arranca nos elogios ao Lobito.
- Ah! O Lobito! Ali sim! Aquilo é que era cidade! Sabia-se  gozar a vida! As pessoas ajudavam-se! Tinha-se amigos!
E então, como se as palavras e o seu entusiasmo sejam o bastante para podermos viajar no tempo, lá volta ele a falar da beleza das praias, a grandura da restinga, o tamanho das lagostas, o asseio das ruas, as docas do porto, o que ali se juntava de navios. Uma maravilha à noite, ver lá do alto aquele mar todo iluminado. E o Catumbela? Que rio!
Se depois lhe censuramos o entusiasmo não leva a mal, mas nota-se que fica triste de nos mostrarmos insensíveis às descrições do que para ele foi um paraíso.
Lá nasceu e se criou, deixou-o já homem feito, sentiu-se desterrado, fazendo das tripas coração ao ver-se num país que desconhecia, onde o sol brilhava menos, e com uma gente a quem pouco faltava para lhe parecer estranha. Salvou-o a Lisnave.
- Vocês não conheceram aquilo! Era uma potência. Vinham patrões do estrangeiro, gente graúda habituada ao melhor, e ficavam de boca aberta. Porque se trabalhava ali na perfeição. Tudo certinho, alta qualidade, sempre dentro dos prazos. Ainda hoje sinto honra das coisas que lá fiz, tenho os diplomas para quem quiser ver.
Com um gesto de desalento levanta a canadiana, a acenar ao empregado para que lhe traga outra cerveja.
- O mal é que já não há homens, só bandalheira.
Chegado a esse ponto, e bebido um golo, esquece a Lisnave, o Lobito, as visões  do passado, começa a massajar lentamente o lado do fígado até que um de nós faça a pergunta ritual: - Isso vai melhor?
Olha o interlocutor como se a questão o surpreendesse, mas a resposta é sempre a mesma – “A muher reza, faz promessas, mas não vai” – e uma vez ou outra, para impressionar, puxa a camisa, põe à mostra a cicatriz da cirurgia que lhe fizeram o Verão passado.
- Facada de respeito.
Acenamos que sim, condoídos, porque lhe temos amizade, mas esforçando-nos por esconder a malícia, pois também agora o remate será o mesmo:
- No hospital do Lobito não faziam isto. Não me deixavam assim. Agora cá! Às vezes até me pergunto se estes gajos estudaram.
Faz uma pausa, e com as memórias a atormentá-lo muda de expressão, a quem o não conhece o desabafo parecerá raivoso, mas é dor verdadeira:
- Culpa do “Bochechas”, que entregou tudo aos pretos. Agora andam eles no chique e nós de tanga!
Publicado na DOMINGO CM.

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