ALBERTO GONÇALVES
- in: Diário de Noticias
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Resolvi dedicar o último fim-de-semana à
aventura. Primeiro, pensei no Nepal e na Patagónia. Acabei por alugar um
apartamento na Baixa do Porto, a dez quilómetros cá de casa. Nunca o tinha
feito. Ainda bem que o fiz. Encontrei uma cidade nova e, para mim, desconhecida.
Defeitos? Por onde começo? Há imensos turistas. Há imensas lojas
"giras" que vendem tralha para turistas, de galos de Barcelos
estilizados a discos de fado genérico e repelente. Há imensos restaurantes de
qualidade e preço e estética variáveis. Há alojamentos ditos de
"charme" por toda a parte. Há o custo de um café ou de um croissant
no Majestic, que se julga o Rainbow Room. Há pastelarias ancestrais
transformadas em páginas da Architectural Digest. Há bares com espanhola
frequência (nos dois sentidos). Há gente e barulho nas ruas até de madrugada.
Virtudes? Quase todas as descritas acima.
Há meia dúzia de anos, ia-se ao Porto com o tipo de disposição antropológica
que motivaria uma visita a Detroit: mal o Sol se punha, não se via vivalma ou viam-se
almas evitáveis; os estabelecimentos eram escassos e decrépitos; incontáveis
edifícios estavam lacrados a tijolo e prontos para o abate; o abandono parecia
irremediável. De repente (?), nasceu ali - desculpem lá - um "destino de
viagem" a sério. Houve um momento, sábado à tardinha, em que atravessei o
Largo de São Domingos e, com provável exagero, decidi que poucos lugares na
Europa seriam capazes de derrotar aquele cenário. É verdade que abundavam os
clichés, da brisa morna às esplanadas cheias, do trompetista
"espontâneo" à confusão de línguas (salvo seja), da conversão de
negócios falidos às fachadas "reabilitadas" e lindas. Abençoados
clichés: eu não podia estar melhor. E o melhor é que podia, bastando para tal
descer à Ribeira e, de caminho, jantar na Adega de São Nicolau, que não
precisou do recente despertar portuense para ser, sempre, perfeita. A título de
digestivo, o Douro à noite.
O casal de amigos lisboetas nados ou
adoptivos que me acompanhava andou dois dias de boca aberta. Eu também, e não
só por culpa das empadas da Ribeira, do bife tártaro do Reitoria ou das tripas
d"O Buraco (uma humilde divindade com placa de homenagem a Pires Veloso e
ao 25 de Novembro no interior). O Porto que imaginavam não se assemelhava em
nada à realidade. Não sei porquê, ou prefiro não saber, mesmo hoje as
televisões teimam em servi-lo suburbano e rude, exclusivamente habitado por
laparotos cujo único tópico de conversa é a bola ou os "temas"
sugeridos pelos repórteres dos "telejornais". É como se se mostrasse
Lisboa apenas através de Chelas. Ou do dr. Costa.
Se insistirem em felicitar o principal
responsável por tudo isto, adianto que não foi nenhum dos pensadores da Porto
2001, ou do Euro 2004, ou de qualquer dos "desígnios" com que os
partidos prometem regenerar a plebe e cumprem a regeneração das finanças dos
comparsas. O destacado "autor" deste Porto não está na toponímia ou
na estatuária local, chama-se Michael O"Leary e é presidente da Ryanair, a
companhia aérea que em 2009 plantou uma base em Pedras Rubras e liga
directamente a cidade ao mundo. Os restantes responsáveis foram os pequenos,
médios e grandes investidores privados, a tradição comercial tolhida por
décadas de paternalismo e enxovalhos estatais e que, face à oportunidade e a
certa liberdade, acordou. E a Airbnb. E a Booking.com. E, imaginem, a Uber.
Claro que o "renascimento" não é
necessariamente definitivo nem se livra de sombras e ameaças. Os poderes
públicos, municipais ou centrais, são peritos em "intervir"
(espatifar, em português) no que funciona graças à sua relativa omissão. Além
disso, temos uma inclinação suicida para ouvir vozes clinicamente alérgicas ao
sucesso alheio - quando o sucesso alheio resulta mais do trabalho que da
proximidade a quem decide. Já paira no Porto o tipo de "argumentos"
avessos ao "excesso de turistas" (bonito é o abandono), à
"massificação do comércio" (bonitas são as falências), à
"gentrificação do centro" (bonita é a pobreza), à
"descaracterização da zona histórica" (bonitos são os graffiti) e ao
diabo a quatro (bonitos são os impostos, e os limites à circulação, e o
"investimento" em delírios, e a arrogância dos políticos, e as
trapaças de autoproclamados "activistas").
O Porto, sendo o Porto, tem tudo para
correr bem. Sendo português, não falta o que pode correr mal.
Domingo, 1 de Maio
Um exemplo
Fernando Rosas é um homem notável. Em
décadas de carreira pública, nunca lhe descobri uma opinião favorável à
liberdade, à democracia e ao progresso, embora encha a boca com esses vocábulos
ao ponto da obesidade. O homem parece fossilizado desde os tempos em que
dirigia a Luta Popular, onde cantava hossanas, de que nunca mostrou sombra de
arrependimento, ao "grande Estaline" (juro) e "ao camarada
Mao" (é redundante jurar). Em 1976 ou em 2016, no MRPP ou no BE, boa parte
dos horrores totalitários dos últimos cem anos tiveram no dr. Rosas um
encarniçado e, admita-se, sincero entusiasta. "Historiador" na vida
civil, este devoto de genocidas esforçou-se por explicar o passado e adivinhar
o futuro. Em qualquer dos casos, falhou sempre. No dia em que acertar, estamos
feitos. O dr. Rosas não serve para coisa nenhuma, excepto de exemplo a fugir.
Naturalmente, saiu da universidade jubilado e permanece na sociedade
prestigiado, indicadores cabais da dignidade de ambas.
Por decisão pessoal, o autor do texto não
escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.
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