07/05/2016 -
Por estes dias, o complexo
político-empresarial anda especialmente excitado com a abertura do Túnel do
Marão. O brilho do betão, o estalar dos foguetes e o ânimo da romaria continuam
a deixá-los em êxtase. O momento, cheio de simbolismo, inspira-lhes pompa e
circunstância. A ancestral ideia do isolamento que sustentava a identidade
transmontana acaba de vez este fim-de-semana. A facilidade e o conforto do
túnel vão fazer esquecer o pesadelo de viagens intermináveis na cauda de
camiões, o perigo da chuva, do gelo ou o nevoeiro que tornava as passagens do
Marão no Inverno em autênticas aventuras. Sim, o túnel vai aproximar o interior
ao litoral, vai tornar o Norte mais pequeno e Trás-os-Montes e Alto Douro mais
ligados ao mundo. Mas apesar desta evidência, o tom glorificador com que o
complexo político-empresarial celebra o momento não deixa de ser uma impostura.
Uma impostura igual à esmola que se dá a um pobre depois de o expropriar. O
túnel é útil e é bom, mas é também um monumento ao esquecimento e ao fracasso
da acção do Estado numa parte substancial do seu território.
Trás-os-Montes e o Alto Douro deixaram de
estar isolados quando, em 1988, o então primeiro-ministro Cavaco Silva
inaugurou o troço do IP4 entre o Porto e Vila Real. Mas os que esperavam que a
velocidade resolvesse os constrangimentos de uma região pobre e atrasada,
desiludiram-se. Entre 2001 e 2014 a
região perdeu 50 mil habitantes, passando de 450 para 400 mil. Mais grave
ainda, os que ficaram foram amplas camadas de população mais envelhecida e mais
fragilizada. Se em 2001 havia nos municípios do Alto Tâmega 158 idosos por cada
100 jovens, o último censo diz que esse índice passou para os 258 idosos por
cada centena de habitantes mais novos. Os custos da desertificação são visíveis
em múltiplos indicadores, mas note-se o valor do rendimento per capita:
considerando um índice 100 para a média nacional, cada habitante dos municípios
de Trás-os-Montes tem de viver com 80, os do Douro com 77 e os do Alto Tâmega
com 71.
O túnel do Marão significa sem dúvida o
golpe derradeiro à mitologia transmontana que durante gerações levou os seus
cidadãos a acreditar que, “Para cá do Marão, mandam os que cá estão”. Mas as
estradas são melhores para destruir identidades colectivas do que para trazer
desenvolvimento. O embaixador Seixas da Costa, um notável transmontano,
escrevia ontem no Jornal de Notícias que “com a abertura oficial do túnel do
Marão, a geografia vai mudar no Norte do país, a coesão nacional reforça-se e a
justiça faz-se”, uma crença que não deixando de ter uma boa parte de verdade, é
acima de tudo uma manifestação de fé: a fé ilusória do cavaquismo e do
socratismo que depositava nos “melhoramentos” materiais a causa primeira e
última do desenvolvimento. Hoje, essa visão renascida do fontismo está bem
expressa no agravar da desertificação, do envelhecimento e da pobreza na maior
parte dos territórios do Portugal interior.
O IP4 ou a actual auto-estrada
transmontana serviu mais para esvaziar a região do que para inverter o seu
ciclo de regressão económica e demográfica. O poder polarizador do Porto ou de
Braga acentuaram-se ao ficar mais acessíveis. O traçado que passa ao lado de
cidades como Vila Real ou Mirandela ou de vilas como Murça criou apenas um
túnel a ligar dois pontos num mapa. Nunca foi um veículo de criação de
empregos, de intensificação de redes comerciais no interior da região, de
atracção de investimentos ou de pessoas. É à custa deste exemplo que se torna
conveniente e sensato deixar de acreditar que há um tempo novo com o túnel. Não
haverá. E a “culpa” não é do túnel ou do IP4 ou da A4 que se fizeram. É de tudo
o que nem o Estado nem muitas das instâncias públicas e privadas da região não
fizeram.
Depois do célebre PDRITM
financiado nos anos de 1980 pelo Banco Mundial, que alavancou de
forma decisiva a primeira vaga de reconversão das vinhas do Douro, ou após os
primeiros programas operacionais dos primeiros quadros comunitários de apoio, a
região deixou de se pensar como um todo. Os seus recursos agrícolas e naturais
foram esquecidos ou, quando muito, sujeitos a investimentos desligados de
qualquer propósito de eficiência e de valia económica. Milhões de euros foram
gastos em florestas que arderam, em pomares que mirraram ou em supostos
programas de promoção que, como o Douro
Film Harvest,
investiram dezenas de milhares em visitas de estrelas decrépitas à Régua ou em
concertos seguidos de jantares faustosos para autarcas, como o de B.B. King em
Sabrosa. Com excepção das notáveis feiras do fumeiro de Montalegre e Vinhais, a
criação de empresas, a comercialização de produtos ou a contratação de
profissionais qualificados nunca foi uma prioridade. Ideias como a discriminação
fiscal positiva de Elisa Ferreira ou planos realistas como o Programa para a
Recuperação de Áreas e Sectores Deprimidos que Daniel Bessa dirigiu em 2003
nunca passaram do papel. Por omissão do Estado e por inércia dos transmontanos.
Para o Estado era mais fácil construir
estradas e para as autarquias mais proveitoso fazer pavilhões. Dezenas de
parques empresariais espalhados pelos municípios nasceram para ser invadidos
pelas ervas. Contratar empreiteiros para apresentar obra e cortar fitas sempre
foi mais fácil do que pensar em planos, envolver pessoas, assumir riscos, ter
tempo para esperar e talento para criar. Perante uma região em anomia e um
mundo autárquico incapaz de perceber as consequências do fim do ciclo de
investimentos nas infra-estruturas básicas, o Estado teve rédea livre para
tratar Trás-os-Montes como o lugar do degredo, onde tudo podia acontecer sem
que ninguém fizesse queixa. Foi nesse clima de irresponsabilidade,
provincianismo e cobardia que o Douro e Trás-os-Montes trocaramum dos mais belos vales do país, o do Tua , por um prato de
lentilhas servido numa barragem. É por causa disso que o Douro fica com uma
fatia minúscula do valor do seu vinho, é por causa disso que a região que
produz quase metade da energia hidroeléctrica do país se contenta com umas
esmolas dadas pela EDP para calar ex-autarcas que quiseram ir na corrente da
barragem do Tua.
No meio de toda essa anomia, esperava-se
que o saber da academia fosse capaz de temperar o desequilíbrio de uma
região/colónia esquecida e mal tratada. Infelizmente, a Universidade de
Trás-os-Montes não esteve à altura do desafio. Desatou a criar cursos a eito na
ânsia de coleccionar docentes e alunos para crescer pelo umbigo. Departamentos
cruciais como a enologia foram entregues a feudos pouco empenhados em
acompanhar de perto a modernização que se fazia no Douro. Hoje, a sua nova
equipa reitoral e Silva Peneda, presidente do Conselho Geral da UTAD, querem
recuperar o tempo perdido. Fazendo regressar a universidade ao território que a
alimenta e lhe dá sentido. Virando a página do novo-riquismo delirante e
irresponsável que quase a matou. A UTAD de Fontaínhas
Fernandes é a melhor notícia da região em muitos anos.
Há hoje em Trás-os-Montes o que houve no
país nos últimos 40 ou 50 anos. Há o azeite de nível mundial, a enologia ou a
pecuária, há o Douro onde nascem vinhos capazes de obter 100
pontos em 100 nas mais prestigiadas revistas do mundo, há uma nova,
ainda que pequena, geração de empresários e agricultores que luta contra a
corrente e recusa sair, há o turismo e o Douro Regia Park onde se ensaia
finalmente a sério o cruzamento entre a ciência e os recursos da região. E há
também o túnel que tornará para sempre impossível o “calafrio” que Miguel Torga
sentia quando vencia o Marão e entrava na terra que se orgulhava de ser dona
dos seus destinos. Mas, por estes dias de festa, convém não cair em mais uma
ilusão que transfere para os dois buracos cravados na serra o poder milagroso
da transformação, da riqueza e do regresso à terra prometida.
De uma vez por todas, uma estrada é uma
estrada é uma estrada. Para que Trás-os-Montes e o Alto Douro se desenvolvam,
vai ser necessário muito mais que obras concessionadas com taxas de
rentabilidade garantidas. Vai ser preciso o que tanto tem faltado: ousadia,
empenho, perseverança, estratégias e investimentos. O túnel, sem dúvida, é bom
e útil, mas não passa de um tónico muscular inoculado num corpo social e
económico em profunda regressão. Acreditar no seu pode milagroso, como anda por
aí a propalar o complexo político-empresarial, será mais do mesmo. O caminho
mais fácil e mais rápido para o esvaziamento da região.
Nasceu em Alijó, Alto Douro, em 1965,
estudou na extinta Escola Normal do Porto, foi professor durante dois anos e fez
parte do grupo de estagiários que integraram a primeira redacção do PÚBLICO no
final de 1989. Durante quase uma década trabalhou na área da Economia. Neste
período fez estágios e programas de formação em Portugal, Japão, Estados Unidos
e Bélgica e escreveu, em autoria exclusiva ou em co-autoria, os seus primeiros
livros sobre uma das suas paixões pessoais: o
Douro e a memória do vinho do Porto. Foi grande repórter do Diário Económico e regressou ao PÚBLICO
em 1999. Aí foi grande repórter, lançou a Fugas
em parceria com David Lopes Ramos e
entrou na direcção do jornal em 2000.
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