A fim de vislumbrar o que há-de vir, os
ingénuos assistem na internet a conferências TED, compram revistas sobre
gadgets ou viciam-se em ficção científica. Se os ingénuos habitarem entre o
Minho e o Algarve, farão melhor em acompanhar a actualidade venezuelana. Na
hipótese de isto correr conforme os pessimistas esperam, está lá o que nos espera.
É escusado recuar demasiado: apenas nos
últimos dias, a miséria local subiu a níveis que fazem a austeridade da troika
assemelhar-se ao conforto de Beverly Hills. Numa cedência à ecologia, a
electricidade desaparece durante quatro horas diárias. Numa medida de elementar
justiça social, os funcionários públicos trabalham apenas às segundas e terças
de manhã. Numa medida de pedagogia experimental, as escolas fecham às sextas.
Num gesto de incentivo à poupança, os centros comerciais abrem a meio gás. Numa
prova de resistência ao consumismo, os cidadãos aguardam em filas a aquisição
de luxos como roupa e comida. Numa afirmação dos valores colectivistas, o
desodorizante é partilhado a quase dois euros por dose na axila. Num grito de
revolta contra a ditadura dos relógios, o fuso horário desloca-se meia hora.
Numa inquestionável vitória sobre o colonialismo, a língua oficial passa a ser
o sueco.
Só a última mudança é uma graçola de Woody
Allen. Mas o ímpeto da revolução bolivariana é tal que ninguém se surpreenderia.
Infelizmente, julgo que muitos portugueses ainda se surpreendem face às
comparações com o nosso caso (no sentido clínico). Aos cépticos, lembro que,
pormenores à parte, em Caracas a coisa também começou assim, com o poder tomado
por um bando de rústicos, nostálgicos do comunismo ou meros oportunistas de
carreira. E também houve bazófia, proclamações de soberania, injúrias a
imperialistas imaginários, juras de amor à liberdade, promessas de imparável
progresso. E não faltou o anestesiado clima inicial, em que se tomou por normal
e até simpática a consagrada receita do desastre. E não faltaram a fé, o
foguetório e as subidas sucessivas do salário mínimo, que de salto em salto
ronda hoje os treze dólares mensais. E não faltou a indigência, perdão, a diligência
da "intelectualidade" internacional, que tipicamente apressou-se a
venerar os rústicos: a Venezuela é o futuro, repetia-se aqui e ali num passado
relativamente recente.
O resto será história, mais exactamente a
história do costume sempre que o catequismo marxista ilumina os povos. Apesar
de especificidades regionais, petrolíferas e monetárias, quando duas
experiências principiam de igual modo, não é improvável que terminem de modo
parecido. Para já, Portugal encontra-se na fase do fervor autonómico, na qual
se recusa toda a ingerência externa que não consista em empréstimos
incondicionais. Com um bocadinho de azar, e outro de impaciência estrangeira
com malucos, chega-se não tarda ao desodorizante repartido, às velinhas ao
serão e à atribuição de culpas à ingerência externa (excepto esmolas, por
favor). De caminho, aprende-se pela enésima vez que a realidade não se
estabelece por decreto.
Claro que tudo, incluindo a penúria, tem
vantagens. Enquanto, aos poucos e a custo, a Europa reconhece a calamitosa
ascensão do islamismo dito radical, a originalidade indígena arranjou uma
calamidade para se desgraçar primeiro: uma aliança de lunáticos empenhados em
afundar-nos no exotismo do Terceiro Mundo. Literalmente no fundo, talvez os
terroristas não deem por nós. Pela Venezuela ninguém dá nada.
Sexta-feira, 29 de Abril
Primavera marcelista
Os obcecados por números talvez notem que
o défice vai de vento em popa, que a dívida pública aumenta com galhardia e que
o governo anunciou 120 medidas até 2020, quase todas destinadas a investir
fortemente na despesa. Felizmente, um modelo de ponderação garantia que os
portugueses não são números, mas pessoas. Pessoas como o dr. Costa, que quando
não está a rir sabe-se lá do quê está a jurar que não admite (ouviram?) salários
baixos. Pessoas como o ministro Centeno, que já riu mais. Pessoas como os
dirigentes das duas agremiações comunistas que suportam o dr. Costa, que fingem
contestar o poder enquanto de facto o ocupam. E pessoas como Sua Excelência, o
Senhor Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
No discurso do 25 de Abril, o PR traçou um
retrato fidelíssimo do país. Só que não do nosso. É um país onde as pessoas
"estão a viver a saída de uma crise". Um país onde os cidadãos
começam a "reacreditar (peço desculpa) no futuro". Um país onde todos
"vivem já uma distensão, impensável há escassos meses". Só se for
muscular, de tanto abrirem a boca perante as intervenções de Sua Excelência.
Porque é que o prof. Marcelo diz coisas
assim? Há por aí inúmeras teses. Ele deseja a permanência do governo. Ele
alimenta uma velha e discreta amizade com o dr. Costa. Ele não consegue despir
(salvo seja) o fato de comentador. Ele sonha com a "descrispação"
(peço desculpa) do clima político para evitar maçadas. Ele quer o povo unido e
disponível para o aclamar em uníssono. Ele acredita de facto no que diz (e em
unicórnios).
Até se perceber qual destas teorias
resiste, uma outra teoria desabou com estrondo: a de que a
"distância" do anterior presidente era nociva e condenável. Mal li
que o prof. Marcelo tenciona visitar três mil freguesias, e previsivelmente
aliviar-se de quinze mil opiniões extravagantes, pensei logo nos
"silêncios" de Cavaco Silva, um santo homem.
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