No meio da balbúrdia geral, é bom que, de quando em quando, se fale a sério.
Quaisquer que sejam as virtudes que tenha
ou venha a ter o governo de António Costa, nunca se livrará do seu pecado
original. O PS nunca anunciou em público e claramente a sua intenção de fazer,
se fosse preciso, uma aliança parlamentar com o PC e o Bloco. A legitimidade e
a constitucionalidade do arranjo que afastou a direita do poder não foram
prejudicadas com isso: os nossos deputados recebem um mandato livre, não
recebem um mandato imperativo. Mas, tudo visto e considerado, a manobra de
Costa mudou unilateralmente o sistema partidário e com isso a natureza do
regime. O novo sistema irá impor uma relação diferente entre os partidos, se
não acabar mesmo por dividir a esquerda e a direita e tornar ingovernável o
país. Embora não se note muito neste tempo de euforia da esquerda, que a
televisão e os jornais servilmente reflectem, um pequeno solavanco basta para
estabelecer o caos.
A Monarquia caiu com as cisões nos dois
grandes partidos do regime, o Regenerador e o Progressista. Dali em diante a
rotação pacífica entre estes dois membros do “arco governamental” não se
reconstituiu com a tranquilidade do passado. Cem anos depois, se Costa falhar,
um acidente que não parece improvável, não haverá maneira de o substituir
ordeira e normalmente. Por um lado, o PSD ou, pelo menos, parte do PSD está em
pé de guerra; e o CDS não cresceu e não se sabe ao certo para onde irá,
sobretudo sem Portas. E, por outro lado, um descontentamento sério com o
taumaturgo Costa atiçará, como de costume, as guerras da esquerda para além do
sensato e do remediável.
É nesta situação que o último pilar do
regime, a Presidência da República, está hoje à mercê de uma dezena de
candidatos, nenhum dos quais Portugal respeita como uma indiscutível figura de
autoridade política e moral. Este vazio que o PS e o PSD encorajaram e que a
abstenção de algumas notabilidades reforçou é por si significativo, porque
revela o pessimismo e o medo com que os putativos responsáveis do regime vêem o
futuro. Evidentemente, a eterna cantilena da felicidade e da justiça que, ao
virar da esquina, esperam o país continua como sempre com entusiasmo. Mas, de
facto, as paredes da casa já começaram a tremer. O foguetório inaugural de
António Costa não durará muito e na Presidência não ficará ninguém que leve
atrás de si um solitário português. No meio da balbúrdia geral, é bom que, de
quando em quando, se fale a sério.
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