NA PONTA DA LÍNGUA
O bolo-rei deixou de ser monolítico e ainda bem porque sabe bem escolher os bons estilos
Miguel Esteves Cardoso - in: Fugas, Jornal Público |
Na terça-feira é dia de Reis e não podemos escapar à avaliação
anual do bolo-rei português.
Este ano vou contrastar os dois estilos principais de
bolo-rei: o tradicional, mais seco e pesado e o moderno, mais fôfo e levezinho.
Para exemplo do primeiro estilo escolhi o bolo-rei da Padaria
Confeitaria Rainha da Foz no Porto e, como porta-estandartes do segundo estilo
o bolo-rei da Pastelaria Garrett no Estoril. Se tivesse de escolher um estilo
intermédio seria o excelente bolo-rei da Confeitaria Nacional em Lisboa.
Para perceber a secura do bolo-rei tradicional é preciso
conhecer a Teoria da Esponja e do Embucho que me foi transmitida pelo meu pai,
Joaquim Esteves Cardoso.
O bolo-rei era o bolo preferido dele porque era um
bolo-esponja e um bolo-embuchador. É um bolo que não só se presta a um cálice
de Vinho do Porto, da Madeira ou Moscatel de Setúbal como não passa sem ele.
Assim como os tremoços salgados puxam pela cerveja e as
amêndoas torradas puxam por um Xerês fino ou uma Manzanilla, o bolo-rei puxa
pelo eco líquido e alcoólico das passas que tem.
Se o Moscatel for velhote e de bom ano — os datados do José
Maria da Fonseca são infalivelmente obras-primas — será a melhor companhia que uma
fatia de bolo-rei pode ter.
O Moscatel de Setúbal traz na alma as laranjas amargas de
Setúbal com as quais partilha o vento e é por isso que parece o último ingrediente
de um bolo-rei tradicional.
O método é encher a boca de bolo-rei e depois deitar lá para
dentro umas gotas de Moscatel. Devidamente encharcado, o bolo pode ficar minutos
às voltinhas dentro da boca.
O bolo-rei da Rainha da Foz, agora sob nova gerência, é
portentosamente seco e carregado de frutas e de nozes. Quase não há lugar para
a farinha. Quando comi a primeira fatia fui transportado para a minha infância:
antigamente todos os bons bolos-reis eram assim.
Tive pena que o meu pai não estivesse vivo porque seria o
maior apreciador deste bolo. O bolo-rei da Rainha da Foz, como muitos outros do
Porto, foi feito para acompanhar um Vinho do Porto. Porventura um tawny
velhinho seria o mais adequado mas qualquer Vinho do Porto (mesmo um LBV decente)
que se possa beber sozinho encontra neste bolo-rei uma oportunidade de brilhar.
Os bolos-reis secos são também ideais para acompanhar chá ou
café de filtro. Têm a vantagem de servir para muitas pessoas: estão tão
carregados que uma fatia é suficiente para fazer a festa de cada convidado.
Foi a primeira vez que provei o bolo-rei da Rainha da Foz,
graças ao nosso amigo, o actor Luís Manhita. Fiquei impressionadíssimo. Já a
Maria João que é da escola da Confeitaria Nacional, apesar de gostar do bolo,
achou-o doce de mais. Para mais está escusadamente coberto de uma camada
generosa de mais de açúcar de confeiteiro que não se deixa sacudir. O bolo fica
bonito mas, idealmente, a doçura dos bolos-esponja deve ser quase
exclusivamente fornecida pelo vinho espirituoso que os acompanha.
O bolo-rei da Pastelaria Garrett também já foi mais seco (e
doce) mas foi sempre muito leve e fofinho. Todos os anos apuram a receita e a
versão de 2014 é a melhor de sempre. Não é novidade nenhuma: a de 2015 há-de
ser melhor ainda.
A cristalização da fruta é magnífica (sobretudo a casca de
laranja e os figos) e a suspensão da fruta e das passas na massa aérea e
amarelinha parece um milagre. Arranca-se cada nuvenzinha com os dedos e, quando
são acabadas de sair do forno (como são todas nesta época) só se pára quando já
não há mais bolo para comer. Foi o que nos aconteceu este ano. Embora talvez se
conserve uns dias (falo sem ser por experiência) a questão é teórica para quem
não é capaz de guardar uma única fatia para o dia seguinte. Diga-se que com o
bolo-rei da Garrett a Maria João partilhou-o em rigoroso fifty-fifty.
É raro poder dizer-se com satisfação e verdade: tanto o
passado como o futuro do bolo-rei prometem mais tempos e bolos bem passados.
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