quarta-feira, 12 de junho de 2024

NINGUÉM ESCREVE AO CORONEL


JORGE  GOLIAS


Desde há dias que o meu Tm mal tuge ou muge! Esta estranha e triste constatação trouxe-me à memória o ditado sementem ut feceris, ita metes – como semeares assim colherás! Pois, andei a dizer/escrever que não gostava de falar ao Tm e ora toma lá, para aprenderes a ter tento na língua. Mas, como a literatura me está sempre presente, logo me veio à memória o título deste romance (Ninguém escreve ao coronel) de Gabriel Garcia Marquez (Gabo) que, para o efeito, também serve para esta crónica. Gabo deve ter escrito o texto mais triste da sua brilhante carreira. Ainda mais triste do que a Crónica de Uma morte Anunciada. Um coronel reformado, isolado na sua aldeia, na casa herdada, de chão de terra, com poucos teres e haveres, mas com um galo de combate. Sem pensão, ia todas as sextas-feiras à chegada do correio para ver se recebia a tão ansiada carta de concessão da pensão de reforma. O tempo ia passando e o casal ia vendendo os parcos haveres para não passar fome. O galo era a única fonte de rendimento que só rendia quando havia combates e saía vencedor, mas comia todos os dias e o milho que gastava era o milho que faltava ao casal para mastigar algo que se sentisse. Passaram 15 anos assim, de espera e desespera nas sextas-feiras negras do correio que não veio, de fome negra e miséria exposta, que quem lê não relerá, tão triste é o conto/novela de um realismo mágico latino-americano típico destes grandes escritores.

Um dia a Miné, amiga cá de casa, pediu-me um romance curto, que a paciência para ler tijolos já não era muita, e eu lembrei-me deste. Pouco tempo depois bateu à porta, entrou e devolveu-me o livro após poucas leituras e muitas críticas à minha péssima escolha. A Miné estava farta de tristezas e pobrezas, ainda que literariamente ricas, e eu triste fiquei já tinha pouco tempo para fruir pequenas alegrias, pois partiu pouco depois.

Estava eu então posto em sossego, vale lembrar o vate nest’arte da escrita, quando toca o telefone. Afinal não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Era o Vasco, marido da Lídia, a escritora da moda, que nos prendou com o primeiro romance de Abril e agora com a sua continuação. E oiço o amigo dizer que trouxe umas cerejas boas do nosso torrão transmontano que me queria trazer a casa, ou seja, dado e arregaçado! A língua portuguesa tem provérbios para tudo e é um gozo moldá-la ao nosso jeito.

Espero então que chegue o Vasco, que ia levar a Lídia à Feira do livro, onde vem dando autógrafos e aonde já fui numa tarde quente recolher o romance que leva o título Cinquenta Noites de Abril e que é então a continuação do São Flores de Amor, os Cravos de Abril.

Cerejas, vermelhas, prendadas de cor e de sabor, uma das boas memórias da nossa infância, que um amigo trouxe ao coronel. Pois, ninguém escreveu ao coronel, mas alguém trouxe as cerejas do meu contentamento. Bem hajas Vasco que, com estas boas novas de Vila Real, me lembras a minha passagem pelo Liceu CCB, as minhas jogatanas de futebol, as bilharadas e os covilhetes da Pastelaria Gomes, nos intervalos das aulas da manhã. Ah, e as tripas aos molhinhos de uma tasca que já esqueci o nome! Talvez o Chichoilo. E já agora, lembro também os marranços para os exames no cemitério da meia-laranja!

Então, este texto que começou sem rumo, às apalpadelas no escuro da literatura clássica, com queixas de mim e do mundo, acaba assim neste fim de tarde cinzento, com poeiras do Sara e o chão cheio de flores roxas dos jacarandás, mas com um cesto de cerejas vermelhas transmontanas.

 

Carnaxide, feriado de um Santo que ainda não sei, 7 de Junho de 2024

JG83

Nota – O Santo, afinal, era o feriado de Oeiras!

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