domingo, 6 de novembro de 2016

O Diário de Vasco Pulido Valente - 31 de Outubro a 5 de Novembro, 2016


Vasco Pulido Valente - Observador
A “Europa” morreu há muito e hoje os portugueses não passam de um incómodo e de um prejuízo para a Alemanha e para os países que dependem dela. Nem assim Portugal percebe que não é e nunca foi europeu
Segunda-feira
Dizem que por pressão de Angola e dos negócios do petróleo, Portugal aceitou a Guiné Equatorial (um antigo protectorado espanhol) na CPLP. A Guiné Equatorial é uma ditadura, governada desde 1979 à maneira norte-coreana, por um indivíduo chamado Teodoro Obiang e pelo filho Teodorino Obiang, um gangster internacional procurado pela polícia francesa. Neste paraíso dos direitos do homem continua a existir pena de morte e a máquina de repressão que produz para o pai Teodoro maiorias de 98 por cento dos votos. Muito bem, não se pode pedir perfeição a toda gente. Mas talvez se pudesse pedir ao Estado português, que se rege teoricamente por outros princípios, que não admitisse a Guiné Equatorial na CPLP, tanto mais que a população só fala francês, vagamente espanhol e umas tantas línguas tribais. Não foi esse o parecer das cabecinhas que nos pastoreiam. Pior ainda, sem discutir a coisa (e nem sequer a revelar), o primeiro-ministro e o Presidente da República resolveram agora, por sua alta recriação, propor que, como na Commonwealth, os naturais de qualquer país da CPLP gozassem em Portugal dos mesmos direitos dos portugueses (incluindo o direito à residência). Não é preciso ser bruxo para perceber que esta enormidade (que viola Schengen e vai irritar profundamente a “Europa”) tresanda a petróleo ou a negócios de petróleo. Nós sempre vivemos numa pobreza envergonhada. O dr. Costa e o dr. Marcelo perderam a vergonha.

Quinta-feira

É celebrado este ano o centenário de uma pessoa de que hoje ninguém se lembra e que ninguém lê, Mário Dionísio. Foi um mau poeta, um mau romancista, um mau pintor de fim-de-semana e, principalmente, um mau crítico. Mas no cume do antifascismo, logo a seguir à guerra, foi também o “controleiro” do PC para o “sector intelectual”. Quando Cunhal, já preso, exigiu aos pobres literatos portugueses o estrito acatamento do “realismo socialista” de Jdanov, Mário Dionísio saiu do partido, mas ficou até ao fim da vida um “simpatizante” convicto. Conheci muito bem o indivíduo. Primeiro, como professor de literatura portuguesa no Colégio Moderno de João Soares (avô) e, depois, porque os meus pais, igualmente devotos da seita, eram amigos dele. À sexta-feira, havia sempre uma reunião em casa de Mário Dionísio, cuja função era discutir a “linha correcta” para o PC, os “desvios” ideológicos da “inteligência” indígena e, lateralmente, as malfeitorias da Ditadura. Faziam parte deste grupo João Cochofel e a mulher, a pianista Maria da Graça Amado da Cunha e o marido (Roger de Avelar), o erudito excêntrico Huertas Lobo e uma ou outra figura de passeio. A partir dos doze, treze anos, comecei a ser arrastado para esta catequese e passei muitas noites – calado e quieto – a ouvir aquela gente perorar.
Mário Dionísio, como é evidente, presidia. Os meus pais mal abriam a boca: a minha mãe não tinha qualquer qualificação formal e o meu pai não passava de um engenheiro químico, ainda por cima director de uma empresa. Mas, calados que estivessem, não escapavam à crítica do seu estilo de vida. Tiveram de prometer não gastar mais do que ganhava um funcionário de Estado médio, não usar o carro em viagens de prazer e não me vestir luxuosamente. O povo passava fome e um bom comunista não devia viver como um milionário. Foi assim que, com muita raiva minha, usei calça curta e casacos voltados durante o liceu inteiro, ou quase.
Fora isso, Mário Dionísio, justiça lhe seja feita, defendeu meia dúzia de escritores contra a fúria jdanovista do tempo, entre os quais José Cardoso Pires que me descreveu mais tarde os tremores com que tinha ido apresentar Os Caminheiros ao sumo sacerdote da ideologia. Como seria de esperar, Dionísio acabou a presidir à “comissão de saneamento” do Ministério da Educação. Toda a vida se preparara para esse nobilíssimo papel. Quando o meu pai morreu, deixou um quadro de Mário Dionísio: não houve leiloeiro ou ferro-velho que lhe pegasse.

Sexta-feira

Os portugueses nunca deixarão de me espantar. Uns berram por aí indignados contra a “austeridade” da “Europa” e não querem pagar o que lhe devem; outros persistem ainda em dar conselhos para o regresso dos bons tempos do crescimento e do pleno emprego (que acabaram por volta de 1968-69) e para a ressurreição de um mito, que só circunstâncias de acaso, inteiramente irrepetíveis, permitiam. A “Europa” morreu há muito mais de vinte anos e hoje os portugueses não passam de um incómodo e de um prejuízo para a Alemanha e para os países que dependem dela. Mas nem assim Portugal percebe que não é e nunca foi europeu. Mesmo quando a França (segundo o sr. Hollande) aldraba as contas do défice – de resto com o incitamento e a cumplicidade do sr. Barroso e do sr. Juncker – não alvorece no pequeno cérebro nacional que Bruxelas não levantará um dedo para nos tirar de sarilhos. Para a Alemanha, e mesmo para a França, só contam os países, ou as regiões, do antigo império soviético entre Riga e Trieste. Portugal e a periferia mediterrânea (excepto a Espanha) são restos de uma política confusa, que se tem tarde ou cedo de liquidar e que, entretanto, precisam de se resignar a viver numa miséria recatada e cumpridora. Nem a bofetada que o sr. Hollande aplicou aos nossos patriotas de trazer por casa os vai acordar. Afinal, não passámos séculos – como Belgrado e Bucareste – a imitar a França?

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