Como pode o Padre Mário Sousa garantir que a tradução de Frederico Lourenço não foi “dialogada” com helenistas, leitores ou teólogos?
O Padre Mário Sousa publicou neste jornal
um interessante
artigo [http://tempocaminhado.blogspot.pt/2016/10/a-traducao-da-biblia-grega-de-frederico.html ] sobre a tradução da Bíblia por Frederico Lourenço.
artigo [http://tempocaminhado.blogspot.pt/2016/10/a-traducao-da-biblia-grega-de-frederico.html ] sobre a tradução da Bíblia por Frederico Lourenço.
A
qualidade do seu trabalho (estudioso que passou pelo Pontificio Instituto
Biblico, grande instituição jesuítica, tal como a Pontificia Gregoriana) e as
questões do seu artigo justificam, no entanto, algumas notas da minha parte –
na qualidade de editor da obra que o Padre Mário Sousa insinua ter sido
apresentada como sendo a primeira tradução das línguas originais para
português. Lamento desmentir essa afirmação, que nunca o editor ou o autor
patrocinaram. Trata-se, sim – insisto – da primeira tradução integral da Bíblia
Grega, a Septuaginta; ou seja, uma versão mais completa, contendo todos os
livros do Novo Testamento, e 53 do Antigo Testamento (ou seja, mais sete do que
a tradução actual do cânone católico). Este é um facto. As duas mais completas
traduções da Bíblia em línguas modernas têm como base, aliás, esse texto grego
– a edição inglesa de Nicholas King (2013) e a alemã, de 2009. Nenhuma delas é
“herege”. Nasceram no interior do catolicismo.
Um dos ângulos de ataque contra esta
edição tem a ver com a insistência de Frederico Lourenço “numa tradução
linguisticamente mais exacta”. O Padre Mário Sousa assinala a intenção (e a
competência do autor), que considera “positiva”, mas nota a perda da “alma
semântica” da Bíblia porque lhe falta uma “finalidade religiosa”. Porém, quando
ocorre Frederico Lourenço invocar teólogos para melhor contextualizar as suas
opções, Mário Sousa acha isto uma contradição. Como se a teologia fosse
propriedade de teólogos e a Bíblia refém da sua finalidade religiosa. Acontece
que a maior parte dos estudos mais inovadores sobre a Bíblia (sem isso
desmerecer o trabalho interpretativo de teólogos como o Padre Mário Sousa) tem
origem nas áreas de filologia de Oxford, Yale, Harvard, Cambridge, etc. É nesse
domínio que se situa a tradução de Frederico Lourenço – e não a fazer
concorrência a uma Bíblia confessional e “finalista”.
O que uma minoria de críticos oriundos da
igreja católica sustenta é que só é boa uma versão de índole religiosa (com a
sua “alma semântica”) e que os leitores não poderão apreciar a beleza
incandescente do texto de Lucas, as perigosas insinuações de João, a
complexidade de Marcos, se não forem guiados por teólogos, pela igreja, pela fé
ou pela Conferência Episcopal (CE) – que patrocina, afinal, uma nova
tradução para daqui a uns anos. Espantemo-nos. Então tudo está bem nas
traduções bíblicas, e afinal a CE promove uma nova tradução feita por uma
equipa que inclui tradutores de versões anteriores?
Nem Frederico Lourenço nem o editor
apresentaram esta edição como “a” Bíblia” (ao contrário de uma anterior edição
confessional). Mesmo assim, vozes da igreja apressaram-se a esclarecer que se
tratava apenas de “mais uma Bíblia” (como se fosse um defeito) e que a CE
promove “mais uma Bíblia” nos próximos anos – ninguém escapa à tentação.
Finalmente, Mário Sousa critica o que
seria a “fraqueza” desta versão: ter sido obra de um homem só e não de um comité
de sábios enquadrados por uma instituição religiosa. Ora, sempre houve
traduções solitárias da Bíblia: São Jerónimo, Wycliffe, Tyndale, Lutero,
Ferreira d’Almeida, Pereira de Figueiredo ou, ainda agora, a notável
versão de Nicholas King, de Oxford. A “Bíblia do Rei James”, de 1611, tece como
base a “tradução solitária” de William Tyndale, académico de Oxford queimado
vivo (por ter traduzido a Bíblia) em 1536. Como pode o Padre Mário Sousa
garantir que a tradução de Frederico Lourenço não foi “dialogada” com
helenistas, leitores ou teólogos?
A verdade é que Frederico Lourenço
procurou o espírito da língua em que o Novo Testamento foi escrito; e isso não
é pouco num país onde os leitores da Bíblia foram condenados à fogueira – por
lerem a Bíblia.
*Editor da Quetzal
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