Alberto Gonçalves
– Diário de Noticias
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A humanidade ganha um homem de
"causas" e nós não perdemos nada
Em 2011, a Assembleia Geral da ONU
dispensou um minuto de silêncio à morte de Kim Jong-il, o divertido maluquinho
que mandava na Coreia do Norte. Vaclav Havel, que morreu no dia seguinte e era
dos raríssimos estadistas contemporâneos que justificavam o epíteto, não obteve
igual "honra". Eis um entre incontáveis exemplos que recordam, aos
muito esquecidos, a circunstância de, por definição, a ONU congregar
maioritariamente ditaduras e, logo, constituir um antro evitável por qualquer
pessoa decente.
É por isso que a extraordinária histeria
em redor da nomeação de António Guterres para secretário-geral me soou mais a
uma saraivada de insultos involuntários do que à aclamação colectiva que
pretendeu ser. O homem certo no lugar certo, nas palavras do dr. Costa? Não é
preciso ofender. É verdade que o eng. Guterres deixou, pelo menos aqui, um
embaraçoso rasto de inépcia. Mas nem o descontrolo decisivo da despesa pública
nem o poder que concedeu a um grupinho de pequenos e médios malfeitores
transformam o eng. Guterres no líder ideal de uma organização habituada a
relativizar a opressão e o terrorismo. Embora o eng. Guterres não merecesse
grande coisa, a ONU merecia bastante pior.
Dado tratar-se de Portugal, porém, estas
insignificâncias não vêm a propósito. Enquanto só faltou passear o homem por
Lisboa em carro, ou autocarro, aberto, o discurso oficial e o discurso oficioso
decidiram fingir - ou, em casos terminais, acreditar - que a ONU é respeitável,
que o eng. Guterres recebeu uma prodigiosa distinção, que os seus compatriotas
devem rebentar de orgulho e que o país alcançou a glória imortal.
Para já, o objectivo é denunciar os
traidores que não desejavam ardentemente a vitória do novo herói nacional. No
mínimo, denuncie-se Durão Barroso, que pelos vistos apoiou a candidata búlgara
e que possui um carácter baixo a ponto de em tempos ter abandonado o nosso
querido país a troco de uma carreira de "prestígio" no
"estrangeiro": o eng. Guterres nunca, nunca, nunca faria semelhante.
Depois, resta--nos passear a soberba patriótica, inchados por integrar o
restrito Olimpo onde cabem o Gana, a Birmânia e o Peru, lugares de origem de
alguns dos antecessores do eng. Guterres. O eng. Guterres partilha com cada
português a proeza de subir ao "topo do mundo". Esperemos que
partilhe o salário.
Tudo isto não significa que o eng.
Guterres não possa desempenhar um papel relevante na ONU. O prof. Freitas do
Amaral, especialista em assuntos, lembra que o secretário-geral eleito é dado
ao "diálogo", capaz de dialogar permanentemente "com todos os
países e organizações envolvidos em cada problema", da resolução de
conflitos ao combate à pobreza e à luta contra as doenças. Não duvido. Se não
mudou desde 2002, o eng. Guterres dialoga tanto que, à conta do aborrecimento,
arrisca erradicar dois terços das misérias da Terra. Cansados de o ouvir,
inimigos ancestrais acordarão tréguas sem termo, vírus invencíveis farão as
malas a caminho de destino indeterminado, e mesmo os pobres perceberão que o
seu sofrimento até aí era comparativamente tolerável.
Em suma, a humanidade ganha um homem de
"causas" e nós não perdemos nada: é também por causa do eng. Guterres
que estamos assim. Como dizia a manchete do Público, todos ganhamos. Excepto
juízo.
Segunda-feira, 3 de Outubro
O contragolpe popular
Por falta de tempo e de interesse, não
acompanho a actualidade brasileira, como não acompanho a paraguaia, a
luxemburguesa e a nepalesa. Mas, deste lado do oceano, a ortodoxia vigente
teimou em informar-me que, nos últimos meses, o Brasil foi vítima de um golpe
perpetrado pelas elites e destinado a trocar, no poder, uma presidente eleita e
um partido amigo dos pobres por um sujeito odiado pelo povo e uma data de
quadrilhas ao serviço da burguesia e do imperialismo.
Sobretudo por isso, aguardei com certa
expectativa e sede de justiça as eleições municipais de domingo, que
inevitavelmente traduziriam a revolta do povo perante tão iníquas proezas.
Resultados? O partido do novo presidente (o sujeito odiado pelo povo) ganhou a
coisa, com 1027 autarcas e 1,2% de crescimento face a 2012. Diversos partidos
que colaboraram no golpe (as demais quadrilhas ao serviço da burguesia e do
imperialismo) cresceram abundantemente e ocuparam os lugares seguintes. O
partido amigo dos pobres (e da ex-presidente eleita) caiu de terceiro para
décimo lugar, encolheu 60%, conseguiu uma única capital estadual (no Acre,
atenção) e, para efeitos práticos, quase desapareceu.
É possível explicar isto? Será que houve
fraude? Será que as elites locais afinal integram uns 90% da população? Será
que, entretanto, dizimaram as classes baixas sem ninguém dar por ela? Será que
os brasileiros são estúpidos? Será que a nossa ortodoxia não sabe o que diz ou
sabe que o que diz é mentira? A última pergunta é apenas retórica. As
anteriores pedem respostas urgentes, sob pena de ficarmos com o mundo ao
contrário. Qualquer dia, a realidade é mais credível do que a ortodoxia.
Por decisão pessoal, o autor do texto não
escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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